sábado, 25 de dezembro de 2010

A NOITE QUE FOI DE NATAL

E o velho, incomodado, cansado, retirou-se. Já não aguentava mais. Queria ir deitar-se. E, amparado por netos e filhos, foi para o quarto. A cama era tudo quanto desejava.
Dera a meia-noite. Alguém em figura de Pai Natal andou a distribuir as prendas. Já nada justificava que ali continuasse, em sacrifício. Doíam-lhe as pernas. Com tanta doçaria, doía-lhe a barriga. Com tanto frenesim, o coração era-lhe um cavalo desenfreado. Os outros que ficassem; eram novos, a festa era deles.
O Pai Natal fora generoso. Dera-lhe um maço de tabaco aromático e um cachimbo de marca. Há muito que deixara de fumar. Mas talvez alguém não tivesse notado o facto. Dera-lhe um livro para ler. Um belo livro, por sinal, de um autor consagrado, na calha do Nobel. Há muito que deixara de ler. Só esporadicamente o fazia, com a lupa que o Pai Natal do ano anterior lhe dera; utilizava-a para ler o jornal. Mas talvez alguém não tivesse notado esse facto. Dera-lhe umas fofas e quentinhas pantufas, iguais às que sempre desejou ter. Mas há três anos consecutivos que recebia como prenda de Natal umas pantufas iguais; ou melhor, quase iguais: as do ano anterior não lhe serviam (dois números abaixo), e cada um dos três pares tinha um xadrez que variava de cor: sobre o verde, sobre o azul, sobre o vermelho. Mas talvez alguém não tivesse notado o facto. Dera-lhe um roupão. Um belo roupão. Um roupão igual ao que lhe deram os filhos, três meses antes, quando fez anos. Mas talvez alguém não tivesse reparado no facto.
Chegou ao quarto e pediu que o deixassem ser ele a deitar-se, não iria precisar de ajuda, que voltassem para a festa. Boa-noite. Até amanhã. Durma bem.
Estava cansado. Todo o corpo lhe doía. Mas não tinha sono, tinha-o espalhado. O seu horário não era aquele.
Pôs-se, então, a rever os seus presentes, as prendas que lhe deram. Foi-as vendo e foi-as guardando nos sítios certos.
Era uma extraordinária colecção de cachimbos. Alguns, peças invulgares. Outros, memórias quase sem data. Outros, peças sem interesse.
Arrumou o roupão. Cheirava a novo, mas era rigorosamente igual ao que lhe haviam dado nos seus anos, três meses antes. Um roupão em tons roxos, azuis-celestes, amarelos-desmaiados. Eram assim, mas ele gostava deles. Lembrava-se que já tivera um casaco de quarto assim. Alguém podia ter-se lembrado de lhe dar um igual. Mas ninguém se lembrou.
Arrumou as pantufas. De facto, lá estavam as outras, alinhadas. Também o que se pode dar a um velho como eu?! – pensou.
Deixou o livro na pequena mesa do quarto. E começou a despir-se.
Podiam ter-me dado um pijama. Isso, sim, faz-me falta. Este está mais velho do que eu. Mas ninguém se lembrou disso.
Deitou-se na cama. Sentia-a fria. Era uma noite fria de Natal.
Até ele vinham os sons animados da sala. Cantava-se, por vezes. Outras vezes, eram gargalhadas conjuntas, risos colectivos. Por vezes, chegavam sons sussurrados, indistintos.
Não conseguia dormir. Também ainda não tomara os medicamentos. Tomou-os. Uma caterva deles. E ficou à espera que o sono viesse via medicina. Que amainasse aquele galopar. Aquele não era o seu horário.
Incomodado, cansado, mesmo sobressaltado, levantou-se. Talvez no cadeirão se sentisse melhor. Vestiu, então, o roupão. Sem saber bem porquê, vestiu o roupão novo. E também calçou as pantufas novas. Foi pegar um cachimbo. Optou por um com muito tempo. Acariciou-o. Acariciou também o livro. Provavelmente um belo livro. Pegou na lupa. E assim se deixou estar. Talvez serenasse. Talvez adormecesse.
De manhã, deram com ele sentado no cadeirão; talvez fingindo que fumava e lia.

Fernando Hilário, “Escrita de Mel e Água”, Jornal de Notícias, Sexta-feira,
27 de Dezembro de 1996   

domingo, 19 de dezembro de 2010

EM VÉSPERAS DE NATAL


Quando Cavaco Silva diz que “a nossa cara estava perto da parede”, é preciso que se diga (que se esclareça) que essa cara é a dele e a dos políticos que nos desgovernaram nos últimos anos e não a cara dos portugueses que em nada contribuíram para a crise vergonhosa em que nos encontramos.

De resto, se Cavaco Presidente da República aborreceu e aborrece, Cavaco Presidente em campanha para a Presidência da República aborrece muito mais, dir-se-ia mesmo que já não se aguenta.

“Véspera de Natal” foi publicado na rubrica Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, há mais de uma década. É um conto baseado numa situação real e, talvez por isso, mais do que recorrer ao artifício literário, a sua escrita pretende cingir-se à realidade presenciada e vivida pelo autor.


VÉSPERA DE NATAL

A rapariga entrou com a mãe e uma irmã mais nova. Havia muita gente à espera de ser atendida. Era véspera de Natal e as prendas levavam tempo a vestir com papel colorido e laçarote. Também havia quem comprasse muita coisa e lhe custasse a decidir: Levo isto. Não: levo aquilo. Pensando bem, prefiro isto.
A mulher que atendia num balcão acanhado levantava a cada instante os olhos para o todo da loja e era pouco lesta a aviar a clientela. A loja estava apinhada de gente que espiava tudo e em tudo bulia. Por isso, a mulher, que me pareceu ser a proprietária, vigiava constantemente.
Uma outra mulher ocupava-se dos embrulhos. Mas era muito lenta, como se fosse inexperiente. Tinha, porém, a preocupação de agradar; deixava para os clientes a escolha do papel e da cor do laço. Mas havia sempre mais uma mão que passava a estender o papel, a alisá-lo, a vincá-lo; sempre mais uma tirinha de fita-cola, não fosse por ali o embrulho desfazer-se; sempre mais um toque e ainda mais outro, no laço, e depois a ver como caiam as pontas. As mãos hesitavam sempre, tremiam, demoravam na decisão. Cada embrulho era um enjoo.
Eu aguardava a minha vez. Só estava ali para comprar um jornal. Mas não tinha pressa. E divertia-me com toda aquela trapalhada de gente, prendas, papéis e laços, sobretudo com os olhos vigilantes da proprietária, nervosos e miudinhos, a ver se alguém punha asas nas coisas da sua loja.
De repente, a rapariga encontrou o que a fez vir ali. Disse à mãe que eram as caixinhas em escaparate num pequeno armário.
 – É isto, aqui. Vê, mãe? – disse ela, entusiasmada.
A mãe baixou-se para ver, libertou uma expressão de certa anuência e recompôs-se. Logo depois, a filha segredou-lhe, mas num tom que não pude deixar de ouvir:
– É isto que eu gostava de ter. E, no mesmo instante, a mãe perguntou:
– Diz lá outra vez como se chama!
Então, a rapariga subiu-lhe ao ouvido e ter-lhe-á soletrado: Com…pa…sso.
A irmã fora colar-se ao balcão, rendida aos malabarismos da mulher que embrulhava as prendas. Estava agora à minha frente, com a cabecita a jeito para uma brincadeira. Não resisti: fiz-lhe uma festa disfarçada. Num movimento rápido, voltou-se e olhou-me num instante de dúvida. Eu terei deixado escapar alguma expressão que a fez concluir ser eu o autor da brincadeira. Sorriu e regressou ao malabarismo. Pouco tempo depois, toquei-lhe no ombro mais distante, mas a brincadeira não resultou em nada, ela já não saía do colorido dos embrulhos.
Com voz atarefada ouvi a proprietária perguntar uma vez mais pelo cliente seguinte:
– Quem está a seguir?
Era eu. Mas a mãe da rapariga tomou-me a vez: avançou para o balcão e disse à filha que perguntasse pelo que vinha. Do modo como agiu, ficou-me a sensação de não ter o propósito de me passar à frente. Por isso não reagi. E confesso que não me desagradava prolongar aquele tempo.
– Faça o favor! – disse a proprietária.
E a rapariga, apontando para a montra do pequeno armário, disse que gostava de ver as caixinhas dos compassos. A mulher foi buscar três e pô-las sobre o balcão. Foi então que a rapariga iniciou um jogo que consistia em pegar nas caixas, uma de cada vez, e perscrutar-lhes o interior.
Era um jogo repetido e longo. A mãe assistia calada. A proprietária ia repartindo o olhar pela rapariga e a loja. A irmã da rapariga cansara-se do jogo e voltou a colar-se ao balcão, novamente rendida ao malabarismo da mulher dos embrulhos.
Eram três marcas diferentes de compassos. Uma delas, eu conhecia do liceu. Ao tempo, era indiscutivelmente a melhor e também a mais cara. Muito namorei um desses estojos, com compasso, tira-linhas, várias pontas, caixinha de minas…, muito completo, que a Papelaria Central exibia, em destaque na montra: caixinha preta, elegante, de tampa a abrir como de baú; as peças acomodadas numa ergonomia de flanela azul… ou verde? Já não sei… Namorei-o, mas para mim foi estojo que nunca saiu da montra da Papelaria Central.
A rapariga parecia enfeitiçada com as caixinhas. E eu estive quase para me intrometer, opinando. Mas não o fiz. De qualquer modo, a mãe dela não me daria tempo. É que, a modos de pôr termo àquela dança de caixas, ela rompeu a perguntar:
– Quanto custa isto?
A proprietária foi então pegando nas caixas e, à medida que lia os preços na etiqueta colocada na parte de baixo, ia dizendo:
– Esta custa setecentos escudos; esta, novecentos; e esta, mil e duzentos.
Mas esta revelação não caiu bem na mãe da rapariga:
– A mais barata custa setecentos escudos?! – disse ela, com grande espanto. E, voltando-se para a filha, continuou:
– Eu não dou setecentos escudos por esta coisa! Não faltava mais nada! Aliás, para que queres tu uma porcaria destas?!
Atraídas por aquela voz desgovernada, as pessoas próximas puseram-se a olhar mãe e filha. A mulher dos embrulhos deixou a meio o corte da tirinha de fita-cola. A irmã da rapariga estava pendurada na interrogação daquele momento. Por instantes, a proprietária ter-se-á esquecido de vigiar a loja. Petrificada, a rapariga deixava os olhos nas caixinhas. E eu já previa o desenlace daquela cena.
Não me enganei: num rompante, a mãe pediu desculpa à proprietária, Desculpe!; arrancou a filha mais nova do balcão e desandou loja fora. Atrás, com passos de tristeza e, certamente, de vergonha, seguiu a rapariga.
Apanhando-me ali, a proprietária encolheu os ombros num gesto a que eu não reagi nem quis compreender. E, quando lhe pedi o jornal que ali me trouxera, já a animação anterior às caixinhas dos compassos se tinha instalado na loja.


                                     Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, JN.         
   

domingo, 12 de dezembro de 2010

ÁRVORE, FLOR E AVE

Em 1997, numa sexta-feira de 13 de Julho, eu trazia para a Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, uma crónica de Inocência e Culpa sobre o acto ou os actos de escrever. Reli-a, há uns dias atrás, e devo confessar que ela, a referida crónica, ou o ofício da escrita ou o tempo que se meteu entre nós de então até hoje, ou o que fosse, fizeram-me nascer umas lágrimas, que eu desconhecia serem ainda tão grossas, nos meus olhos, diga-se, um pouco já cansados, e meteram-se a escorrer pela face abaixo, como rios. Algumas delas vieram dar ao canto da boca onde a língua prontamente as recolheu – lágrimas como frios rios que correm para dentro de nós. Às outras desfiz-lhes os caminhos, secando-as com as mãos.
Ilustrava a crónica um texto-desenho meu, um concretismo de letras e palavras desenhadas e desenhadoras de coisas, que, com pena minha, aqui não consigo reproduzir… Deixo-vos o texto apenas verbal.


INOCÊNCIA E CULPA

Escrever é um pouco como ter um pedaço de terra para onde se lançam sementes. Como vão as sementes germinar, que colheita se há-de vir a fazer, não se sabe. Desde o tempo das sementes encontrarem a terra ou de as palavras a folha de papel semeia-se a incerteza e a esperança. Mas é, talvez, nessa temporalidade de dúvida e de expectativa, nesse tempo de segredo das coisas, que maior é a tensão, o gozo ou o prazer de quem escreve e lê. Tal como semear, escrever é um gesto empenhado, atitude de quem quer revelar aos outros um pouco, ou muito, de si, daquilo que é ou de que é capaz. E, escrever, tal como semear, é sempre um acto de luta, de criação, de libertação.
Ao certo não sei por que trouxe hoje aqui esta imagem de sementes e palavras, de terra e folha de papel, de segredos e de colheitas reveladas. Tanto mais que não é, com certeza, uma imagem inédita. Muitos outros, antes de mim, tê-la-ão já utilizado no propósito de se surpreenderem a si mesmos e aos outros, no intuito de mostrarem um lado ainda oculto das palavras ou uma seara ainda não vista.
Não sei por que trouxe para aqui tal imagem. Mas isso talvez nem interesse. O certo é que já lancei as palavras, o gesto foi o gesto que foi, e o que há para ver já está sob o olhar.
Não sei ao certo as intenções inconfessadas desta crónica, mas ocorre-me a extraordinária ideia de, numa realidade possível ou numa virtualidade desejada, lançar palavras à terra e sementes para uma folha de papel. Ocorre-me a maravilhosa visão de numa folha de papel escrever ÁRVORE, e da palavra aí nascer uma árvore, pequenina, como tudo o que nasce, esperar depois o tempo preciso para vê-la crescida e dar frutos, e depois colhê-los saborosamente.
 Ocorre-me a não menos maravilhosa visão de lançar a palavra FLOR a um campo de terra e aí nascer a concreta linguagem de uma flor de palavras – sim: uma flor toda ela de letras e palavras, desde a raiz às pétalas.
Dir-me-ão que sou louco, que estou louco. Mas talvez não. Acho que não, ou talvez sim, talvez até esteja louco… Mas apenas comunico o que é estranho, o que pode parecer estranho.
O leitor (você, leitor) que já me disse nada perceber de certas crónicas minhas, vai desta vez achar-me completamente louco. E, como ele, achar-me-ão louco todos os leitores para quem o gesto de lançar sementes é um gesto repetido e sempre igual; os leitores que, inocentemente culpados, têm matado as palavras até ao seu ser mais pequeno.
Mas, leitor, deixa-me ser assim louco! Deixa-me ser assim, que é saudável esta loucura! E deixa-me também que te tente numa loucura igual: pega num lápis e sobre um implacável folha branca de papel escreve a palavra AVE. Escreve-a, e depois fica à espera que a palavra se faça ave. E depois hás-de saber ainda esperar que ela se levante voo, e depois voe pelo espaço que souberes imaginar.

Fernando Hilário

domingo, 5 de dezembro de 2010

A EXPLICAÇÃO DAS COISAS


Por vezes, o imprevisto e o inédito das coisas que nos acontecem, levam-nos a não termos ou não acharmos uma explicação. De outras vezes, porém, a explicação é tão óbvia e está tão perto de nós que não conseguimos vê-la. Só não há sobressaltos na recorrência das coisas.  


          HISTÓRIA DE UM PINTOR QUE QUERIA PINTAR GOTAS DE ÁGUA

Havia um pintor que queria pintar gotas de água. E pintava-as: de azul, de rosa, de verde, de vermelho... Mas logo as gotas de água se desfaziam em manchas de tinta. E o pintor ficava triste.
Muito triste, porque o que ele queria era pintar uma gota de água que se mantivesse em gota de água colorida. E bastava-lhe conseguir uma, uma só que fosse, para se sentir um pintor feliz.
Para tanto, pensou que com um mais fino e mais macio pincel, talvez conseguisse pintar uma gota de água. Teria que ser um pincel muito fino, muito macio…
De entre os muitos pincéis que tinha, acabou por achar um que era muito, muito delicado.
Molhou-o então na tinta e, cuidadosamente, aproximou-o de uma gota de água; porém, logo a gota se desfez numa mancha de tinta. Sim: a gota desfez-se numa mancha de tinta.
E o pintor ficou ainda mais triste e mais infeliz.
Mais uma vez tentou, e outra, e mais outra, muitas vezes, até que o pintor percebeu que as gotas de água engordam com a tinta, por pouca que seja, e rebentam.
São as gotas de água tão delicadas que não se deixam pintar! E gotas coloridas… Só se as imaginarmos! concluía o pintor.

                           In Histórias Exemplarmente Imperfeitas (textos inéditos)     
                                                                                        Fernando Hilário

domingo, 28 de novembro de 2010

O TEMPO

O que devemos exigir aos políticos, neste tempo em que pagamos pelas asneiras que fizeram, é que sejam exigentes com eles mesmos, no sentido de serem menos arrogantes, menos vaidosos, menos erráticos e, se possível, mais inteligentes. 


O CONTO DO RELÓGIO ANTIGO

Finalmente! o homem entrou na casa de antiguidades para comprar o relógio que um dia vira na montra. Desde esse dia, andou a namorá-lo vezes sem conta. Às vezes, a montra perdia alguns objectos, outras vezes ganhava outros, e o desarrumo era por vezes tão grande que se tornava difícil distinguir fosse que objecto fosse no desarrumo de tantos objectos; mas olha aqui, olha ali e o homem sempre descobria o seu relógio.
Punha-se a vê-lo, a mirá-lo… Ora, já o sabia de cor, se fechasse os olhos… sobre pedestal de pedra branca, o corpo obelisco em pau-santo, dois palmos de altura, torneado de flores, escaparate de lápis lazúli, com ponteiros em prata, finos como óbelos, as horas, em letra romana, também em prata, no auge, um leão triunfante sobre uma águia… sim, se fechasse os olhos, vê-lo-ia na memória tão nítido como ali na montra.  
Entrou, então. E o antiquário disse-lhe tratar-se de um relógio muito antigo e valioso, mas que seria em vão tentar repará-lo: Para tão antiga máquina, não há peças, já não há quem as fabrique! É pena, disse o homem, mas é antigo e belo, fico com ele. 
E o homem veio pelas ruas da cidade com o seu relógio embrulhado num papel azul às listas vermelhas e amarelas e atado com uma fita verde que o antiquário encontrou no desarrumo de uma gaveta.
Quando chegou a casa, o homem não trazia os olhos de costume, nem as mãos eram as mesmas. Nessa visível satisfação mostrou a preciosidade à mulher e disse-lhe quanto custara. Mas a mulher levou as mãos à cabeça e lamentou que fosse seu homem tão tolo, pois pagava fortunas por coisas sem valia nem préstimo. Com habituada paciência, fez de conta o homem que ali falava um asno, e fechou-se na sala.
A mulher ameaçava do corredor não lhe fazer o jantar, nem sequer isso! Que era um tonto, um tolo aquele seu homem! E mais isto e mais aquilo. Mas, findo algum tempo, emudeceu.
Instituído o silêncio, o homem colocou sobre a mesa o relógio e sentou-se diante dele.
Agora também podia afagá-lo, cheirar o tempo, tactear a idade, presumir a vida que fora sua, como chegara até ali, como exactamente chegara à casa de antiguidades…
O antiquário apenas lhe dissera tratar-se dum relógio muito antigo e valioso. E a ele não lhe ocorrera perguntar… Não lhe ocorreu perguntar e também pouco lhe disse o antiquário.
Estava o homem nesta eucaristia, pareceu-lhe ouvir um tic-tac… Ora, podia lá ser! o relógio não trabalhava, o próprio antiquário lhe dissera que não havia peças para máquina tão antiga, nem quem as soubesse fabricar! Mas ao homem também lhe pareceu ver, seria ilusão, fantasia sua ou não seria, o ponteiro dos minutos a dar um pulo no lápis lazúli do mostrador, e, no tempo que durou certamente um minuto, o relógio anunciou pim pim pim pim pim pim pim, sete horas, festivas, pimponas; e o homem achou-se feliz, tão feliz que agradecia e chorava a Deus ter-lhe dado uma mulher assim.

sábado, 20 de novembro de 2010

MARAVILHA DE CÃO

                           

Quando a maquineta da Via Verde faz “pi”, eu sinto a mão do político a entrar no meu bolso. Nos descontos do meu vencimento, nos impostos que pago, no custo do que é essencial à vida…, também.
No tempo em que vivo, tenho a consciência plena de que a classe política não respeita a minha cidadania e que o tempo em que vivo é de uma fraude absoluta…
Obama elogiou o esforço de Sócrates para ultrapassar a crise: Obama elogia, afinal, o roubo de que somos vítimas.
Obama disse que “o Bo é o membro mais popular da Casa Branca”. Maravilha de Cão.

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Deixo-vos com um conto que escrevi para a Escrita de Mel e Água, do Jornal de Notícias, mas (creio) que não chegou a ser publicado.

                                              
                                                                              PERSONAGEM DE QUADRO

            Uma sala quase vazia: uma mesa redonda, duas cadeiras, um sofá velho, um quadro na parede e ele.
            Ele também já era velho. Passava muito tempo, sozinho, ali, naquela sala, a recordar o que fora a vida.
            Quase não comia.
A comida enjoava-o.
E dormia, quase sempre, ali, no sofá.
            A sua maior agitação era quando decidia ir até à janela do fundo da sala e ficar algum tempo a olhar a rua.
Mas não se pense que era grande a sala; não: a sala era uma pequena sala quadrada.
Parecia-lhe a ele grande, e muito distante do sofá a janela do fundo.
Mas não eram.  
            Outra agitação era ir à cozinha preparar qualquer coisa para comer; é: tinha que comer!
            E outra agitação era ir ao quarto de banho.
            Mas não se pense que as outras divisões da casa eram grandes e que distantes ficavam umas das outras; não: a casa, toda ela, era pequena; ele é que a achava grande, demasiadamente grande, e com as divisões muito distantes umas das outras.
            Às vezes, à casa vinha uma vizinha amiga para saber se fazia falta alguma coisa e conversar um pouco.
            Quando isso acontecia, falava ele tanto que se tornava maçador, e, às vezes, ou quase sempre, sem saber ao certo a razão, chorava.
            A vizinha, que tinha a sua vida, não ficava por lá muito tempo.
            Mas ficava algum. A ele, porém, parecia-lhe visita de médico.
            Duas vezes por mês, à casa vinha uma filha para trazer roupa lavada, coisas de comer e perguntar se fazia falta alguma coisa.
Quando isso acontecia, falava, tornava-se maçador e acabava por chorar.
A filha tinha a sua vida, e não ficava por lá muito tempo.
Depois, voltava ele a ficar ali, àquela casa entregue, entregue àquelas suas agitações…
            Mas um dia aconteceu uma coisa diferente. Ouviu ele alguém falar na sala, sem que, aparentemente, houvesse alguém na sala que fosse capaz de falar.
            De início, atrapalhou-se um pouco, sentiu até medo.
            Mas logo que percebeu quem falava, achou-se bem, ficou contente.
            E passou a sua vida a ser outra.
            É claro que continuou a casa a ter as divisões do mesmo tamanho e à mesma distância umas das outras.
            E é claro que a janela do fundo da sala continuava no fundo da sala, etc.
            Mas agora arranjara companhia, e quando vinha a vizinha visitá-lo, ele já tinha outras coisas para dizer, e não chorava.
Muito se ria a vizinha das coisas que ele lhe contava. E se não tivesse ela a sua vida, ficaria por lá muito mais tempo, a ouvi-lo falar das conversas que tinha com o velho do quadro.
Sim, a falar com o velho do quadro, que tão velho era quanto ele.

                                                                                  Fernando Hilário

sábado, 13 de novembro de 2010

O QUE HÁ PARA AVALIAR


                O modelo de Avaliação do Desempenho Docente (ADD) é um daqueles mimos da educação em Portugal, cuja génese se ficou a dever à ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues e que, de algum modo, Isabel Alçada dá continuidade. Objecto de muita contestação por parte dos professores, no início do ano lectivo de 2008-09, e das negociações sindicais, o modelo, ao perder a figura e o papel do Professor Titular, parecia ganhar um outro rosto, uma outra essência, mas o facto é que não ganhou.
Saiu de cena o Professor Titular, a quem, entre outras inconfessadas funções, cabia a “competência” de Avaliador dos professores do processo de ADD, nomeadamente das aulas observadas. Hoje, essa função é atribuída a um outro professor, mas provem igualmente duma arbitrariedade funcional. Só por mera casualidade, o professor designado terá formação ajustada para avaliar processos científicos e didáctico-pedagógicos dos seus colegas, pois é disso que se trata, apesar do eufemismo do modelo o denominar Relator. De facto, a este professor cabe avaliar o conjunto de dados e desempenhos, relacionados com o professor observado, e atribuir-lhe uma classificação.
A avaliação por pares, quando não circunscrita a um trabalho estritamente cooperativo, visando, tão-só, a troca de experiências e a mútua aprendizagem, fere princípios deontológicos, já que leva à diluição de estatutos, cargos e competências. Por outro lado, não garante o distanciamento e a objectividade, imprescindíveis a uma avaliação que se pretenderá séria.
A avaliação de professores deve decorrer de processos sistémicos, susceptíveis de avaliar o trabalho metódico, criativo e inovador, desenvolvido individualmente ou no âmbito de equipas pedagógicas. A avaliação com base em modelos tipificados tende a empobrecer as iniciativas inovadoras, a criatividade e a constante procura de novas abordagens de que os processos ensino-aprendizagem sempre carecem. Os modelos de avaliação baseados em grelhas pré-definidas impedem a observação e valorização das especificidades (de atitudes e desempenhos particulares, das características do ser e do fazer individual) que nelas não estão contempladas.
A Escola deve ser o lugar da diversidade, da salutar confrontação de valores e saberes e da constante reflexão sobre as novas abordagens e metodologias. A escola dinâmica, actual e interventiva, é incompatível, na essência e na forma, com modelos de avaliação burocratizantes, bizantinos, inexequíveis no tempo e no modo próprios, geradores de dispersão e perda de tempo, pouco claros nos seus pressupostos e objectivos e alheados dos reais interesses pedagógicos e científicos.


O MUNDO TODO NA CABEÇA
(conto inédito)


Com um pau riscava o pó do chão e no chão nascia um mundo de árvores, animais, folhas, flores, frutos e um rio e um céu limpo e uma ponte entre as margens e tudo. Mas levantou-se um vento que levou os desenhos do chão e o chão ficou de novo liso. Mas como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pô-lo outra vez no chão.
Sulcava a água do lago com um pau e a água deixava-se sulcar e animavam-se nela desenhos e mais desenhos, os seus e os que a água também fazia; mas a água guardava os desenhos, e breve era um espelho liso. Não tinha importância. Como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pô-lo outra vez na superfície imóvel da água do lago.
Só lhe faltava chegar ao céu.
Um dia, arranjou uma vara tão grande que chegou lá; e com ela pôs-se a riscar o céu.
Os riscos rasgavam de branco o céu azul; mas a cada risco branco o céu logo se fechava, e ficava um céu de azul liso. Mas como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pintá-lo outra vez no céu. Só lhe fazia falta uma vara que fosse grande. Guardou então a sua vara muito bem guardada, pois não é fácil encontrar varas assim tão grandes.
Quando a noite chegou, tinha a certeza que aquelas estrelas e aquelas nuvens mais a lua em quarto crescente eram as que ele tinha pintado. E adormeceu sobre uma pedra à beira do lago com o mundo todo na cabeça.

                                                                                                                  Fernando Hilário

sábado, 6 de novembro de 2010

AFINAL, PARA QUEM FALAM OS POLÍTICOS?


Na mais feliz e vaidosa das oratórias se achou certamente o ministro Santos Silva, quando discursou na última sessão do Parlamento. O empolgado orador fez recurso da metáfora, serviu-se dos mitos e dos símbolos, para uma retórica que quis muito adornada e eficazmente persuasiva. Dir-se-ia um momento brilhante, de grande enlevo verbal, de grande erudição.
A mim me parece tal verborreia, coisa já ultrapassada, sublime pirosice, paráfrase prenhe de citação enciclopédica. Mas esta apreciação talvez não interesse.
Interessará saber, isso sim, para quem falava o ministro. Sim, sabemos que falava para si próprio e para os outros políticos. Mas tirando esta corte, para quem falava o ministro?
Afinal, para quem falam os políticos?


O CONTO DO HOMEM QUE FOI PARAR AO INFERNO (Inédito)

Um homem foi parar ao inferno. O porteiro encaminhou-o para a Secção de Registos; registou-se, depois uns cicerones da área das relações públicas levaram-no a visitar o inferno, a conhecer a vida, como era, o que podia fazer.
O homem estava admirado, tão admirado que até perguntou se ali em vez do inferno não era o céu. Quiseram saber por que se admirava. Porque é tudo tão agradável! tão simpático! até parece o céu! Mas o senhor conhece o céu? perguntaram-lhe. Não, não conheço! A que se deve, então, a dúvida? O homem calou-se; enganaram-no a vida toda, sempre lhe disseram que o inferno era o fogo ardente, onde sofreria, e, afinal, parecia a vida no inferno um sonho! Saiba que, disse um dos cicerones, a nossa preocupação é que todos se sintam bem no inferno! Mas diz-se tão mal do inferno! disse o homem. Quem diz? perguntou outro cicerone. Toda a gente. Quem? A gente da Terra. Ah, bom, isso sim, essa gente diz mal, mas como pode constatar não corresponde à verdade. Pelos vistos, não, concluiu o homem, e continuou: Mas porque será que dizem mal, se o inferno não é nada do que dizem?! É marketing, disse outro cicerone, o céu não consegue oferecer as nossas condições, por isso, dizem mal; em contrapartida, nunca ninguém nos ouviu dizer mal do céu; a nossa política é simples: deixamos que os outros falem por nós...
Iam andando, os cicerones mostravam o inferno, falavam dele e da vida. O homem estava admirado. Parecia que nada faltava, tudo tinha um ar pós-moderno, nada minimalista, nem sequer espartano, mas sim de shopping luxuoso; as pessoas que se cruzavam com eles nos corredores refulgiam alegria, boa disposição, contentamento; os rostos reluziam, os olhares faiscavam… Na zona da restauração, pararam, coisa digna de se ver, um restaurante estava a abarrotar de gente; tinha paredes e telhados de vidro; era o Zé do Pipo; espiou a ementa exposta à entrada em retábulo debruado com uma parreira em baixo-relevo:
petiscos
bucho chispe orelha de porco fígado de cebolada coração frito torresmos  bacalhau frito  pataniscas de bacalhau  pastéis de bacalhau  caracóis à lisbonense chouriço assado na brasa  favas estufadas com chouriço, os cicerones liam com ele, peixinhos da horta  enguias de barrica  filetes de sardinha  sardinha frita sardinha de escabeche  sardinha assada na brasa  caparau frito  pratinhos de moelas  rissóis de vitela e de camarão  chamuças  croquetes  temos broa de Avintes (…)
            Passou ao peixe:
peixe
 cabeça de pescada cozida com bom colarinho  pescada cozida com batata e feijão verde  pescada frita com batata frita e arroz seco ou malandro  filetes de tamboril com arroz do mesmo  filetes de polvo com arroz do mesmo  polvo à lagareiro sável frito  há mílharas! Os cicerones seguiam-no na leitura, sável de escabeche  chicharro assado na brasa com molho verde  espetada de lulas com gambas  bacalhau cozido com todos  bacalhau cozido com grão  meia desfeita com grão-de-bico  empadão de bacalhau bacalhau à Zé do Pipo  bacalhau assado no forno com grelos  bacalhau com natas  bacalhau com broa  bacalhau de segredo bacalhau à espanhola  bacalhau à Gomes de Sá  lombinhos de bacalhau frito com arroz malandro de feijão vermelho ou de grelos  arroz de bacalhau com ovos escalfados  bacalhau à demo  bacalhau nunca visto  cavala cozida  peixe-espada frito  fanecas fritas  raia cozida  cherne à Durão só por encomenda  robalo ao sal  linguado assado na brasa com molho de manteiga  bife de atum  chocos com ou sem tinta  arroz de lampreia ou à bordalesa (…)
            Passou à carne:
carne
 pezinhos de coentrada  feijoada à transmontana  tripas à moda do Porto  mãozinha de vitela com feijão branco  posta mirandesa, dois cicerones desinteressaram-se da leitura e conversavam ao lado, com batatas a murro  vitela assada  carne à jardineira  lombo, os restantes cicerones continuavam a segui-lo na leitura,  de porco assado com castanhas  espetada de porco preto  língua estufada com ervilhas  estufado de línguas de cabrito à Serra das Meadas  arroz de sarrabulho  rojões à moda do Minho  frango no forno à moda de Baltar  arroz de pica no chão  arroz de pato à antiga portuguesa  chanfana  leitão da Bairrada  coelho à caçador  coelho assado na brasa  coelho recheado  entrecosto na brasa  barriguinhas na brasa  cabidela de miúdos de leitão (…)
            Passou aos mariscos:
            mariscos
percebes  vieiras  amêijoas à Bolhão Pato  camarão da costa  gamba média, os dois cicerones regressaram à leitura, e grande  lagostins  tigres grelhados  maionese de lagosta  lagosta suada, os restantes cicerones desinteressaram-se da leitura e puseram-se a conversar em círculo no meio do passeio; como não viu preçário perguntou É caro? O quê? perguntou o cicerone que lia por cima do ombro direito dele; Se os preços do restaurante são caros? insistiu, e o cicerone da esquerda respondeu Aqui nada se paga. Não se paga nada?! admirou-se o homem que foi parar ao inferno. Não! respondeu um dos cicerones que estava no círculo da conversa, e continuou Está tudo pago. Como é possível?! queria ele ainda saber, mas um outro cicerone, de todos o que tinha o  rosto mais afogueado disse a modos de pôr termo ao assunto Sabe como é, são os apoios a fundo perdido, subsídios vários, coisas assim, há francesinhas à Luso (…)
            sobremesas
pudim abade de Periscos (…) 
Iam andando.  
Estava o homem cada vez mais admirado e perguntou Mas é verdade que vocês tudo fazem para desviar as almas, isso é verdade, não é? Desviar as almas!? que patetice! veja bem: que interesse temos nós em desviar as almas?! O homem pensou um pouco e concluiu, De facto, não há interesse nisso! Claro que não, isso é conversa dos do céu; espalham essa ideia para terem clientela, mas eles é que estão às moscas, disse outro cicerone. Soubesse eu que era assim, ainda tinha feito mais umas asneiritas, lá na Terra! disse o homem. Não seria muito conveniente, disse outro cicerone, olhe que para aqui só vêm aqueles que fizeram o que tinham a fazer; isto não é lugar para mentirosos ou falsos; cada um é como é: quem merece o céu, tem o céu; quem merece o inferno, tem o inferno. Não me queixo, disse o homem, ainda que haja uma pequena coisa que eu gostaria de ver alterada. O que é? perguntou outro cicerone. Isto tem ar condicionado, não tem? Tem, tem ar condicionado; todos os espaços do inferno têm ar condicionado, o ar é todo condicionado. Pois aí é que está o problema, disse o homem, é que eu não suporto o ar condicionado: faz-me arder os olhos, seca-me a mucosa, irrita-me a garganta, causa-me comichão pelo corpo todo! Quanto a isso, não há nada a fazer, disse outro cicerone, está estabelecido assim, não temos hipóteses de alterar seja o que for. Mas, disse o homem, não há nenhum responsável a quem eu possa dar uma palavrinha!? Responsáveis há, disse o primeiro cicerone (aquele que lera a ementa por cima do ombro do homem…), eu posso falar a um responsável, mas não vai adiantar nada! Mesmo assim, gostava de falar com esse responsável, disse o homem.
Fizeram-lhe vir o gerente. Já me constou que o senhor tem problemas com o ar condicionado. É verdade, não me dou com o ar condicionado, vão ter que desligá-lo. Não é possível, disse o gerente. Pelo menos, o do meu quarto... Lamento, mas isso é impossível, disse o gerente, o Departamento da Qualidade de Vida não autoriza que se desligue o ar condicionado, já tivemos casos iguais e o Departamento foi intransigente. Mas, se eu falasse com alguém responsável pelo Departamento de Qualidade..., propôs o homem. Falar pode falar, mas não vai adiantar nada, disse o gerente.
O director do Departamento da Qualidade de Vida foi peremptório: Não há nada a fazer, o ar condicionado é ponto assente, ninguém no inferno pode abdicar dele! Mas, disse o homem, veja bem: o ar condicionado para mim é um incómodo total, não o suporto, é um inferno viver com ar condicionado! Pois se assim é, disse o director, não vejo inconveniente nenhum: viva o inferno, meu caro amigo, viva o inferno!

                                                                                  Fernando Hilário

sábado, 30 de outubro de 2010

NA APARÊNCIA DAS COISAS

Às vezes, metidos por aí, por espaços da realidade tangível, da casa, da rua, da cidade, enfim, de lugares do mundo onde nos podemos encontrar, deparamos com um tempo, aparentemente, em tudo igual a um tempo que fora outrora. E então parece que tudo se veste das mesmas roupas, que há um hálito comum e que todos os gestos são rigorosamente os mesmos. É: por vezes, achamos que tudo acontece num momento plasmado. E achamos tudo tão igual na aparência das coisas, que apenas nos cumpre ficarmos gratos da memória que temos.


PORQUE TODOS SOMOS CRIANÇAS

Trazem o tempo dos dias pequenos e frios; levam longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas!
Servem-se embrulhadas em frágil cartucho de papel de jornal, como um cone, onde se encastelam quentinhas e onde não interessa guardá-las por muito tempo, pois que são boas quentes. Quentes e boas!
Comem-se pela cidade, numa ginástica ágil. Porque são quentes, queimam os dedos, e porque assadas, com a casca da cor da cinza, sujam-nos. Mas aquecem-nos as mãos, o mesmo que dizer o coração. Quentes e boas!
Enchem-nos a boca como um pão farinhento, suavemente doce, suavemente salgado. Quentes e boas!
Vende-as o vendedor de castanhas, numa azáfama de fogo e fumo. Quentes e boas!
A criança que passa com a mãe, não sabia que se assavam e vendiam castanhas na cidade. Quis ver o que era, perguntou, pediu à mãe… Quentes e boas!
O vendedor de castanhas alimenta o fogo, dá-lhe vida; malabarista, faz carambolar as castanhas na caçarola. Hão-de assar todas por igual. Quentes e boas!
Os olhos da criança ardem no rubro do ritual; aprendem-no, guardam-no – a cor, os gestos, o cheiro, a fala. Quentes e boas!
Fogareiro grande; réplica de uma antiga máquina a vapor. Quentes e boas! Cabeça de comboio, como se fosse levar longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas! Quentes e boas! Como se fosse por trilhos a refazer viagens de outrora, de tempos que se perdem no volátil, no fumo dos tempos. Quentes e boas! Quentes e boas!
Donde vêm os vendedores de castanhas? A criança pergunta. Mas não há uma resposta. Vêm certamente dos sítios que se diz serem tão fantásticos que sempre se guardam em segredo. Sim, talvez não interesse saber exactamente donde vêm… Quente e boas!
Cartucho grande? Pergunta o vendedor. O vendedor é o corpo grande de uma castanha assada que se dá em cada cartucho, como um cone de um labor encastelado. Quentes e boas!
Quentes e boas! Depois, então, a ginástica ágil dos dedos, o gosto a pão doce e salgado – o calor de uma relação a inscrever-se, talvez indelevelmente, no imaginário da criança. Quentes e boas!
E o tempo dos dias pequenos e frios há-de repetir-se num ciclo redondo ao jeito das castanhas que se querem quentes e boas. Até lá, até ao tempo de cada vez ser tempo de castanhas assadas, andará no ar o cheiro do carvão em brasa, em cinza, como se fosse um comboio a ligar tempos e lugares, com a cabeça, máquina a vapor, a espalhar memórias, a marcar o rumo e o ritmo das coisas simples, continuamente a apregoar Quentes e boas! Quentes e boas! Quentes e boas!
Fernando Hilário, Jornal de Notícias, Escrita de Mel e Água (Não sei da data em que a crónica foi publicada, mas é provável que tenha sido em: Outono/Inverno da década de 90 do século XX).
 

domingo, 24 de outubro de 2010

IDEIAS GENIAIS

Se avaliarmos o exercício da política e os factos políticos dos últimos 30 anos, é fácil perceber que os políticos tornaram-se uma classe de fiteiros a produzir fitas e mais fitas. E eu abomino fiteiros. E abomino as fitas que fazem. Ultimamente, os fiteiros e as fitas têm ultrapassado as marcas do tolerável. A fita que os vários fiteiros estão a protagonizar é das mais ridículas da nossa História recente. É claro que o país já está farto de tantas fitas e de tantos fiteiros. Mas, entretidos com suas fitas, os políticos, porque são fiteiros, ainda não perceberam isso...
Em 4 de Outubro de 1990, no Jornal de Notícias, do seu ano 103/, no n.º125, publicava-se o texto “A ideia”, na rubrica Escrita de Mel e Água.
Não sei dizer a razão por que escrevi esta crónica com tal personagem e semelhante enredo. Relida assim à distância, parece-me coisa rebuscada para tortura de leitor – mas isso cada leitor o dirá. Destaco, porém, a ideia genial da nota em rodapé.

A IDEIA
O ministro acordou com uma ideia. Tomou o pequeno-almoço com a ideia. Uma ideia genial. Tão genial que até tinha dificuldades em digeri-la. Tão madrugadora a sua cabecinha que até o espantava. Mas o ministro já estava bem desperto: fizera as necessidades, tomara banho e exalava colónia e “after shave”. Já comera os flocos de cereais, o “bacon” e os ovos, os “croissants” com manteiga, as compotas com ricas e finas fatias de pão, uma ou outra bolacha de água e sal, e já saboreara um café moído à mão. Rematava agora com um delicioso cigarro.
Até a boa serviçal estranhou o seu ministro, habituada a vê-lo entornar o sumo de laranja pela gravata abaixo, a deixar que os flocos lhe fossem parar ao goto, a salpicar o colo de compota, a besuntar-se de manteiga e “bacon”, a dizer mal dos ovos mexidos e do gosto do café, a chamar nomes feios aos jornalistas. Mas, nessa manhã, o sr. ministro era um homem diferente: um homem cúmplice entre o compenetrado e o desenvolto.
E a ideia era tão genial! Achava-a tão genial! Tão genial que até receava que não viesse a ser digerida pelos seus colegas ministros, incluindo o primeiro-ministro. Talvez não alcançassem o seu alcance. Talvez não dimensionassem cabalmente a sua dimensão. Talvez não assimilassem a essência intrínseca da sua substância. Talvez não aquilatassem da vital importância da ideia para a economia, para a saúde, para o comércio, para a defesa, para a cultura, para a educação, para o incremento, para o desenvolvimento, para o passado, para o futuro e para o presente do país. Talvez não aquilatassem das frutuosas implicações que o seu implemento traria ao nível da NATO, da OUA, da CEE, UNICEF, FAO, OPEP, ONU, OCDE, ANC, FMI… da Europa e até do Mundo.
É, não iriam percebê-lo. E o pior é que o achariam mal da tola. Por causa da ideia genial, perderia crédito. E talvez até viesse a perder a pasta. Talvez vissem nele um vendido à oposição. E não terminaria o mandato.
Não há hipóteses, comentava de si para si. Não me vão acreditar, comentava ainda de si para si. Dirão que estou passado, comentava. É de mais!, comentava, de si para si.
Mas, de repente, a luz, coada pela vidraça dos vidros duplos e fumados da janela, cintilou e luziu esclarecedora no serviço da finíssima louça do velhíssimo e elegantíssimo serviço de Gilman & Cta de Alcobaça, de Sacavém, de Portugal…  E  se eu expusesse a genial ideia ao chefe de gabinete e aos secretários?! perguntou ele, a si mesmo. Que disparate! – conclui ele, para si mesmo. Então eu agora ia pedir pareceres, dar satisfações aos meus subalternos?! Não. E afastou essa ideia. Mas… espera! – disse ele. E a serviçal esperou. Diga, sr. ministro – disse a serviçal. Digo o quê?! – perguntou o ministro. Diga por que espero – disse ela. Não digo, que isto para ti é “top secret”! E a serviçal desandou, com a manteigueira de cristal na mão.  
E o ministro continuou a pensar. A não ser que eu coloque a ideia ao ministro da… É isso! É isso mesmo! Ele é o único capaz de atingir a amplitude da minha ideia. Já em Coimbra o tipo era uma barra. Sem dúvida! É a ele que eu vou expor a minha genial ideia. Assim, explicada por ele, o primeiro-ministro topa-a à primeira.
E o ministro já se imaginava na assembleia, ora, numa data de assembleias, a falar da sua genial ideia. Via-se, S. Excia, em hemiciclos pejados de deputados a roerem-se de inveja – uma deputada mais que tal, toda embevecida. Via-se estampado nos jornais. De cá e de além fronteiras. A abrir os telejornais. Via-se em todas as cadeias de televisão. Via satélite, por cabo e por tudo. Do Iraque à América, passando pela Grã-Bretanha, pela Rússia e afins; o mundo inteirinho a seus pés. Um nome de pedra e cal na história. Em letras de oiro. Garrafais. Da lei da morte libertado. No “guiness bock”. Em estátua. No Chiado, tomando café à mesa do Pessoa, num tu-cá-tu-lá, pleno de propósito. Embalado nos braços do Infante. Num fraterno abraço ao Marquês de Pombal. Em Guimarães, com D. Afonso Henriques, empunhando com ele a espada.      
Mas reflectiu e disse que não. Não! Não vou meter o tipo nisto. Se o primeiro-ministro viesse a mensurar o peso da minha genial ideia, nunca acreditaria que ideia tão genial fosse minha. E com a capacidade de argumentação que o tipo tem, bem visto como está (toda a gente sabe que o tipo é o menino bonito do primeiro, há até quem diga que devia ser ele o primeiro-ministro…), ora, aproveitava-se logo: palmava-me a ideia genial e eu ficava sem a minha genial ideia.
E apagou o cigarro. Pegou na pasta. E quando a caminho do ministério, já ia com outras ideias.
NOTA: Esta história é pura ficção. Qualquer tentativa para identificação das personagens é pura e estúpida especulação, incluindo a boa serviçal ou mesmo as ricas e finas fatias de pão.