domingo, 24 de julho de 2011

SEM PACHORRA PARA RETOCAR SEJA O QUE FOR

Há uns anos atrás, iniciei um Master em Criatividade e Inovação que a falta de tempo me obrigou a interromper. Numa pasta do meu computador, encontrei algumas reflexões e “respostas” relacionadas com os exercícios, o trabalho, pouco, que desenvolvi do referido master. São textos livres, entusiasmados, tremendamente pessoais, a precisarem, naturalmente, de ser retocados, e que nunca chegaram ao conhecimento do professor que mos solicitou. Publico parte deles, hoje, aqui. Publico-os tal qual os encontrei na pasta do computador. Sem retoques, portanto. Se fossem para entregar ao professor, talvez os retocasse. Assim, creio que não vale a pena. E, verdade seja dita, também não me acho com pachorra para retocar seja o que for… Pronto, vão assim, como quem sai diretamente da cama para a rua, sem sequer passar um pingo de água pela cara…



Sobre os valores e os processos essenciais da criatividade

            Os valores são o resultado de razões intrínsecas da minha personalidade criativa.             São eles que motivam a necessidade ou o desejo de criar. Constituem uma resposta,     porque procurada em desejo, aos impulsos interiores.



            Os fins e os sentidos dos valores são parte natural da minha maneira de viver.      Contribuem para manter a minha identidade e dar sentido à vida. A expressão dar      sentido à vida, só acontece no resultado da criação. Criar ganha um significado             imprescindível na superação da rotina dos afazeres básicos e de sentido utilitário.



            Valor é o resultado da análise que eu faço e que entendo adequado à minha relação        comigo e com os outros – relação que desejo harmoniosa, se possível de paz e amor.            Isto não obsta o conflito, o confronto com os outros, os pontos de vista contrários. A    chegada ao valor é também a consequência dessa aprendizagem, feita de correcções,      cedências e reajustamentos.



O que busco são os valores transcendentais, porque são os que mais exigem de mim e pelos quais pretendo ser criativo. Mas estes dependem dos outros, sobretudo, dos intelectuais, e também dos corporais. Os meus valores socioprofissionais assumem   também importância singular. Como professor, persigo a criatividade, entre outros     aspectos, visando um desempenho qualitativo da profissão – pretendo, sobretudo,             motivar a aprendizagem dos meus alunos e fazê-los ter consciência da sua            importância. Não se trata de ser um líder socioprofissional, mas sim de um agente do    processo que contribui qualitativamente para o sucesso dos outros, dos alunos, ou, por          concomitância da Escola.



Tenho alguma dificuldade em criar uma pirâmide (rígida) dos valores criativos     mais potentes e mais débeis; é-me difícil hierarquizá-los como passíveis de serem            arrumados em compartimentos estanques. Creio que há uma diferença entre o que      entendemos ser a importância de cada um dos valores, ou a importância que lhes           atribuímos, e o papel efectivo que têm quando “chamados a intervir”. Por outro lado, é             estritamente necessário questionar os nosso défices de valores, enquanto processo que    visa a sua superação. Esta reflexão, que deve ser constante e eivada de verdade,      revela-se imprescindível para o desenvolvimento de toda e qualquer actividade       desejada qualitativa – reflexão, também, que constitui o processo de nos conhecermos            e que nos leva(rá) ao crescimento permanente. Por outro lado, só quando nos      confrontamos com aquilo que somos e o que podemos ser (ou com aquilo que fazemos    com o que podemos vir a fazer…), estamos a ser criativos, e isto envolve, no tempo e           no modo, todos os valores, dos corporais aos transcendentais, passando pelos   socioprofissionais e intelectuais.



O processo psicossocial da imersão dinâmica dos valores é simultaneamente parcelar (ou faseado) e inter-relacional. (…)

     

Ao poeta Alberto Caeiro, que o seu criador, Fernando Pessoa, considerava mestre, bastava-lhe (dizia ele) as sensações. Poeta da natureza e do sensorial, a beleza para ele estava nas coisas que via, e vê-las tal qual as via, bastava-lhe. Rejeitava, portanto, o exercício do raciocínio ou da intelectualização. Para ele “pensar era estar doente dos olhos”; e ‘fazia-lhe mal pensar’. ‘Não há filosofia numa flor’, portanto, a flor deve ser objecto, primeiro e último, da sensação, defendia. 

     

Mas é claro que nesta atitude poética pode concluir-se haver o mais acabado exercício de intelectualização, e no, aparente, rejeitar da filosofia, o mais recorrente acto de filosofar. Na atitude poética do heterónimo, Alberto Caeiro, pode também concluir-se que se equacionam os seis processos psicossociais – metalinguagem, afinal e também, por onde se questionam e equacionam todos os processos psicossociais da imersão dinâmica dos valores. Do sensorial, donde parte, intelectualizando, imaginativa e criativamente, passando pela dimensão discursiva do texto (a poesia ou o texto que chega ao leitor), cuja recepção se faz pelo gesto da leitura “em apropriação motora e neurológica”, até ao referendo social que consagra ou rejeita tal poesia.

                                                                                     

***

(…) Dos meus pais herdei sobretudo o conceito de boa educação e regras de comportamento, marcados pelos valores da religião católica e da civilidade consensual ou vigente. Saber estar (à mesa, por exemplo); respeitar os mais velhos (ouvi-los e conceder-lhes a primazia); ter uma atitude corporal “educada” (como estar sentado ou de pé, ou o modo de andar…); falar em tom adequado às circunstâncias, com propósito e moderação; aceitar sem contestação o que os mais velhos me diziam (os pais, familiares, professores, padres…), seguir os seus conselhos; seguir os “bons exemplos”; evitar as más companhias; praticar o bem, rejeitar o mal.



***

(…) Na infância e na juventude, creio que pouca coisa. […] Praticamente não tive heróis ou mitos. Houve alguma influência, todavia pouco significativa. De todos os que, apesar de tudo, mais me influenciaram foram os Beattles e alguns heróis da banda desenhada. Eu não pretendia ser como eles, por isso não os imitava naquilo que faziam. Mas serviam-me de exemplo para o que eu pretendia ser: distinto dos outros, por aquilo que viesse a fazer. Talvez por isso, desde criança gostasse de fazer coisas de realização pessoal (desenhos, motos e carros de madeira, etc.) que me mergulhavam num mundo de criação-realização.



***

(…) Os meus melhores amigos ou aqueles que eu mais admirava eram os que se distinguiam dos outros. Ou seja, aqueles que tinham capacidades e habilidades diferentes dos demais. Aqueles, por exemplo, que desenhavam bem, tocavam um instrumento musical… Aqueles que por uma razão ou outra se distinguiam positivamente.



***

(…) A actividade humana visando a criação do novo, do original.

A actividade humana como acto de amor.

A emoção de criar.

O desejo espiritual de se chegar a “uma verdade de Beleza” que, sendo do “eu”, pode ou deve ser partilhada por todos.



A profissão de professor, no conceito de ensinar para levar a aprender, ou de que aprender é desejar aprender e aprender mais, com prazer e alegria. O professor: o motivador e o mediador do crescimento intelectual, físico e humano dos alunos. Também aquele que felicita o sucesso das aprendizagens ou desvaloriza (desdramatiza) o insucesso, voltando a estimular o aluno no sentido de o ajudar a superar as dificuldades.

     

A relação social: eu e os outros ou os outros e eu – somos diferentes, mas podemos         estabelecer relações harmoniosas, ainda que cada um possa continuar a ser o que    verdadeiramente é.

     

Superar o conflito, a adversidade, mantendo a individualidade e a            personalidade.



                                                                 ***

(…) Porque esta é a nossa grande casa, onde todos moramos, a todos compete cuidar dela, mantê-la limpa e asseada. Nenhum arquitecto, nenhuma tecnologia, nenhuma força de braços conseguiriam fazer outra igual ou parecida. É a casa cuja vida depende de nós e de quem a nossa vida e dos vindouros depende. Se a matarmos, morreremos com ela. Para além de tudo, isto é, para além da sua utilidade, é, sobretudo uma obra prima, de Beleza inalcançável.



***

(…) Apenas enquanto o que representam de útil, para resposta às necessidades básicas, para a realização rápida e eficaz de tarefas que nos facilitam a vida e nos libertam para a concretização de coisas mais interessantes, como, por exemplo, este Master.



(…) O estritamente necessário, pois ninguém se alimenta de ar e vento… Ninguém vai a Roma ver a Capela Sistina sem um cêntimo no bolso.



(…) Pintar, escrever, admirar a natureza, confrontar-me com algo que antes não conhecia e me surpreende e fascina. Saber que estou vivo. Levantar-me cedo para tirar partido da vida, vendo, cheirando, sentindo o que me rodeia. Perceber que estou vivo e que vou continuar a viver. Perceber a fidelidade nos olhos dos meus cães. Receber um telefonema ou a visita de um familiar ou amigo. Relembrar a relação sexual que tive com a minha mulher, sabendo que foi do agrado, do prazer de ambos. Tomar uma chávena de café com leite e logo depois fumar um cigarro (1) no logradouro da casa. Ler o vento, ler as nuvens, deixar que a chuva me escreva, o Sol me toque, progrida na sua investida e me invada, me faça corpo coberto de suor. Ver luzir no olhar dos meus alunos a centelha da coisa aprendida. Ter consciência que no atelier estão telas em branco, outras por acabar; a violação do espaço branco de uma tela, o início de um trabalho que desejo. Retomar o livro que ando a escrever. Iniciar numa folha A4 mais um poema, escrito com a tinta preta da Parker (não sei o porquê da tinta preta; que razões presidiram à escolha?...). Ter a consciência de que posso melhorar aquilo que faço, que sou capaz de melhorar. Congratular-me com o facto de ter crescido a planta que plantei. Ver a porta que pintei, o canteiro que fiz, a churrasqueira que fiz; a churrasqueira que junta a família e os amigos no convívio de uma refeição ao ar livre, no logradouro, que está livre pela manhã, mas onde volto a sentar os convivas, imaginando-os aí, na noite de convívio, vejo-os, ouço-os, ouço-me a mim mesmo, imagino a próxima vez, saboreio esses momentos, os que foram, os que imagino, os que hão-de ser – a imaginação é fabulosa (“Pelo sonho é que vamos”, diz Sebastião da Gama; “A verdadeira arte é a arte do sonho”, diz Pessoa.). Aquele que sonha cria mais, aproxima e expande, o próximo e o distante; derruba fronteiras, faz do finito infinito, torna o infinito mais infinito, torna-o infinito; passamos a estar dentro do infinito ou, se também quisermos, para lá dele. Não é verdade que haja um limite previsto, razoável, como é costume dizer-se. O limite é uma convenção, e eu não subscrevi essa convenção; respeito-a socialmente, mas transgrido-a quando quero, quando posso, quando o social sou eu, quando sou o social em mim, quando a minha liberdade é de facto e de direito a minha liberdade em mim, para mim e de mim. Criar é o exercício da liberdade livre, isto é, incondicional, incontestada, incomensurável, o que brota de mim do que fora uma sensação e uma intelectualização em mim – ou a representação de uma vontade ou de um desejo –, de dar um sentido a algo que tendo um sentido percepcionado ou mais ou menos convencionado é todavia e ainda minha a hipótese do sentido ou dos sentidos a dar; às vezes, se possível, a hipótese de abolir o sentido e chegar a outros (…)

                 Creio que me perco neste “torbollino”, e não marquei o início dos cinco    minutos, de nada me serve olhar o relógio, não sei se já se esgotaram os cinco           minutos. A noção empírica que tenho do tempo, diz-me que sim, diz-me que        esse tempo real, cronológico, se esgotou já, mas talvez a dimensão psicológica       me confunda, e talvez esteja nisto há mais de cinco minutos ou talvez só       tenham passado uns três minutos, quatro, talvez. Que importa?!



***

Do meu trabalho depende a minha condição económica e, portanto, material. Não vivo, como já referi, de ar e vento. Mas procuro orientar-me por valores afectivos, emocionais, intelectuais e sociais, marcados pela autenticidade, pela verdade e harmonia, cujo desempenho visa atingir o espiritual e o transcendente. Procuro, pois, ser autêntico, incutir a alegria e, de algum modo, passar a mensagem da Beleza – da Beleza que supera a dimensão estrita do convencional e do utilitário.



O objectivo do meu desempenho profissional é levar os alunos à compreensão, à consciência das ferramentas de que dispõem, o que elas são e o que podem eles próprios fazer com elas.                     



A construção dialéctica e criativa dos valores

Questão difícil. Questão delicada.

      (Pontos negativos / défices / contravalores e desvalores)

     

Uma proposta de valor socialmente aceite, supostamente serve a todos e a cada um.        Mas serve a cada um , porque este eu é dependente do todo. A primazia é dada ao todo      – o “eu” age em função do colectivo, dilui-se nele como elemento integrado, se se   preferir: subjugado, abafado, colectivizado.



Na proposta de valor socialmente aceite, o “eu” é uma peça ao serviço da máquina colectiva. Por isso, quando a peça (o “eu”) manifesta uma diferença (uma disfunção), o colectivo apressa-se a corrigir o grão de areia que compromete a sua engrenagem ou a suposta harmonia que fora instalada e deliberada. A peça que salta do sistema ou que deixou de encaixar-se nele, comprometendo o seu funcionamento, é objecto de reparo, censura, punição.



Na grande maioria dos casos, a proposta de valor socialmente aceite é regulada, controlada, pelas leis civis e judiciais, ou as leis de Estado, cuja função é manter sob vigilância a actuação-comportamento das peças face ao que fora instalado e deliberado. A pena máxima que esta “razão” impõe aos que violam as normas estabelecidas é a expulsão do sistema. Colocar no seu lugar um substituto que garanta a funcionalidade do colectivo, é a necessidade imediata, uma vez que sem a peça que deixou de cumprir a função que lhe fora conferida, o sistema não funciona.

     

Por norma, o “eu” que integra a proposta de valor socialmente aceite, não participa (não participou) na concepção dessa mesma proposta. Daí que o conhecimento que tem do seu papel seja escasso, deficiente. Faz parte do colectivo, mas não conhece de modo esclarecido, ou consciente, o seu papel, não lhe reconhece a importância. Por norma, desconhece também o papel dos outros, bem como o valor intrínseco da proposta. Quando muito, conhece os fins básicos, os mais supostamente evidentes, mas desconhece outros fins, outros valores que, eventualmente, a proposta encerra e cuja importância lhe escapa.

     

O desconhecimento total ou parcial por parte do “eu” (de cada “eu”) da proposta de valor socialmente aceite, acarreta sempre danos (aspectos negativos, défices e contravalores e desvalores).

     

É fundamental que a proposta social seja “construída” por todos os que a vão integrar. É fundamental que cada um a conheça nos seus múltiplos fins e aspectos. O indivíduo que se envolve num projecto social, de que não tem um conhecimento, adquirido através duma consciência crítica, não só desempenha mal o seu papel como pode pôr em causa o desempenho dos outros e o, eventual, interesse comunitário da proposta. É, também, imprescindível repensar, reavaliar, a proposta e o seu desempenho, em tempo continuado da sua actuação, no sentido de lhe reintroduzir os ajustamentos considerados necessários ao êxito da mesma, despistando ou anulando os efeitos considerados negativos.



Porque faço esta proposta?

Porque estou consciente da sua importância e das vantagens individuais e sociais que ela alcança.

     

Que vantagens?

A promoção de valores e a concretização de objectivos que servem ao interesse individual e colectivo

     

Que desvantagens?   

Nenhuma. Pois nenhuma foi vislumbrada. Ou esta e aquela que, equacionadas, ponderadas, discutidas e analisadas todas as hipóteses, não foi possível contornar ou eliminar.

     

As razões que apresento são as da minha consciência, porque elas são o resultado de um trabalho esforçado e verdadeiro de pesquisa, interpretação e análise. Tudo foi objecto de estudo, de análise e ponderação. Se algo não foi levado em linha de conta, foi por desconhecimento meu. Mas, se detectado, comprometo-me de imediato a reavaliar a proposta e a proceder às alterações consideradas necessárias.



Não vislumbro um contravalor à minha proposta.

Se encontrar essa pessoa […], farei um vivo debate de defesa da minha proposta.





Os Valores de toda a vida

Não sei se ao certo sei quais são esses valores. Respondo-te com a pergunta: esses valores serão os que tu aí equacionas. Eles serão também os que enuncias […] atrás. Ou seja, os valores naturais, os valores ecológicos, os valores populares, os da sabedoria universal e, aqui, os contravalores “rechaçados”. Mas tu sabes tão bem como eu que muitos desses valores têm sido maltratados, desrespeitados, subalternizados. E eu não sei (tu certamente também não o saberás) para onde vamos e onde chegaremos sem esses valores. E eu não sei se os valores emergentes (pelo menos alguns) são tão “bons” quanto outros, aqueles com que nascemos e crescemos. Duma coisa tenho a certeza: com o século XXI temos acentuado a destruição dos valores ecológicos, ainda que hoje haja – e ainda bem que há – uma consciência dos danos.

     

Mas bastará haver essa consciência? Será ela suficiente para travar os interesses instalados que grande dano causam (talvez irreversível) aos valores ecológicos? Deixo-te a pergunta, não para que me respondas, apenas porque ela traduz os meus receios e me exercita a consciência.



(…) Sim, é como tu próprio dizes na tua pergunta, “para hacer que el ser humano se desarrolle al máximo de sus posibilidades en su proprio beneficio y para el bien del resto de las personas”. Isso me parece certo e imprescindível que assim seja. Mas não basta saber que estes valores devem estar associados aos direitos humanos e que eles são fundamentais para ultrapassar as dificuldades do mundo. Não basta, ao que parece, ter a consciência disso!... Dir-me-ás que são ainda poucos os que têm, de facto, essa consciência. E quando formos mais, muitos mais, seremos capazes de anular os que destroem esses valores. Concordo. Mas então teremos que ser mais criativos na criação da mensagem, e criativos, muito criativos, na sua propagação, no seu alcance. Creio que aqui (bem como noutras coisas) a criatividade é essencial. É esta a criatividade como valor de valores de que Ricardo Marín fala?   





Exercício de reflexão

Os valores estão em nós, mas podemos sempre procurar (buscar) outros e confrontá-los.



A afirmação precedente é, simultaneamente, uma constatação e uma intenção. Só exercitando a intenção poderemos melhorar o leque de valores, e (re)distribui-los por uma escala (ou pirâmide que, em todo caso, nunca será rígida) que melhor estabeleça a importância ou o lugar devido de cada um dos valores e da relação que se estabelece entre eles.



A adequação dos valores, de acordo com aquilo que somos e/ou pretendemos ser, estrutura-nos enquanto indivíduos humanos. Naturalmente que os valores aprendem-se e reaprendem-se. Importa sobretudo saber reaprender os valores, enquanto processo dinâmico de uma consciência actualizada que sobre eles devemos ter – processo que permite a escolha e o concurso deste ou daquele valor em detrimento de outro que, por uma razão considerada positiva, achamos mais correcta. Este conhecimento ou consciência permite também destrinçar o que pode ser défice de valores ou de contravalores. Ao mesmo tempo, dissipa ou pode ajudar a dissipar os fenómenos de repetição e de imitação, visando a criatividade. Entende-se esta como o desejo e acção do indivíduo a superar-se a ele próprio, na busca do transcendente, da harmonia, do amor, da paz e da Beleza.

     

Para “subir a la cumbre de la montaña de la criatividade como innovación valiosa”, como tu dizes, é preciso caminhar com passos seguros, mas não presunçosos, consequência da escolha que fazes em ti mesmo, avaliados os teus valores, que o caminho é teu, mas a cada pedaço de caminho andado impõe-se a reflexão (“de vez em quando, descansar”), para que consigas chegar onde tu te possas ver e reconhecer. Só assim poderás ver no “cumbre” da montanha tu próprio, que o que então verás de valioso é o teu próprio ser total. Assim, a obra que realizas, em nenhuma circunstância poderá ser outra que não a tua própria obra, e a Obra és Tu mesmo.     



(…) Uma das qualidades deste Master é levar a pensar naquilo que antes não tínhamos pensado. É o caso deste exercício. Enquanto indivíduo criador, não me tinha ocorrido equacionar os valores que estão associados à minha criatividade. Mas certamente isso acontece, algo inconscientemente, algures no tempo e no espaço mental em que decorre a criação, e, no processo desta, esses valores são imperativos evidentes de rejeição ou de aceitação.

     

Eu creio que o acto de criar é sobretudo um acto de escolha e de decisão. No que me diz respeito, essa escolha visa chegar àquilo que me parece inovador. Criar e inovar são, em certo sentido, sinónimos. A minha intenção é ser inovador e original. O que me agrada ver num poema ou num quadro é o que há neles de diferente, de inédito. No confronto com o trabalho realizado, avaliando-o, é isso que procuro. Encontrando o que antes ainda não tinha conseguido realizar, não dou o tempo e o empenho por mal empregues. Todavia, não se trata de obter uma satisfação total: é sobretudo um tempo de agrado relativo que me permite concluir que “não está mal” e que “poderá ser melhor”.



Na minha qualidade de professor, apesar das limitações impostas pelo sistema à profissão, sempre procurei incutir nos alunos a ideia de serem pessoais e criativos. Para tal, sirvo-me de exemplos pioneiros e inovadores da história dos Grandes Homens que, ousando o diferente, permitiram as descobertas que fizeram pular o mundo.



Os que não ousam ser diferentes e inovadores são meros papagaios: animais curiosos (às vezes, maçadores), mas que se limitam a imitar. A imitação e a cópia representam uma estagnação: não se acrescenta nada, não se melhora, não se progride.

     

O mundo está repleto de papagaios. Aliás, o sistema político-mental-ideológico que rege o mundo é o de fazer papagaios que, basicamente, são papagaios de papagaios. Todavia, o sistema espera que de entre a multidão de papagaios surja, às vezes, um que não o seja e que seja, portanto, um inovador, que, naturalmente, terá a sua imensa multidão de seguidores, isto é, de novos papagaios.

     

Creio que o papagaio (estou a falar da ave em si mesma, o “louro”, como se diz por cá) não se acha nunca triste nem insatisfeito por levar a vida inteira a repetir o que consegue aprender, imitando. Suponho que (se isso for possível) deverá inclusivamente achar-se satisfeito, vaidoso, realizado, por conseguir imitar a voz humana, façanha que não está ao alcance de todos os bichos. Mas essa capacidade que ao papagaio é, sob alguns aspectos, notável, para o ser humano não passará de uma capacidade básica. Reger com ela a vida é reduzirmo-nos à dimensão do papagaio, ele mesmo, o louro, o que é pouco e pobre, o que nos atira para a monotonia da repetição, para o caminho que fazemos exactamente igual ao que os outros fazem, isento, portanto, de descoberta, de realização pessoal, de originalidade. E será pouco, será pobre, se nisso encontrarmos alguma alegria, alguma satisfação, alguma conquista, já que, em boa verdade, só conquistamos o que os outros já conquistaram, e nada descobrimos que outros não tenham já descoberto. Por outro lado, assim não somos nós: somos todos os outros, pois que apenas nos limitamos a seguir o caminho indicado e já trilhado. Recordo José Régio, no “Cântico Negro”:



                             “Vem por aqui” – dizem-me alguns com olhos doces

                             Estendendo-me os braços, e seguros

                             De que seria bom que eu os ouvisse

                             Quando me dizem: “vem por aqui!”

                             Eu olho-os com olhos lassos,

                             (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

                             E cruzo os braços,

                             E nunca vou por ali…



                             A minha glória é esta:

                             Criar desumanidade!

                             Não acompanhar ninguém.

                               Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

                             Com que rasguei o ventre à minha mãe.



                             Não, não vou por aí! Só vou por onde

                             Me levam meus próprios passos…



                             Se ao que busco saber nenhum de vós responde

                             Por que me repetis:”vem por aqui”?



                             Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

                             Redemoinhar aos ventos,

                             Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

                             A ir por aí…



                             Se vim ao mundo, foi

                             Só para desflorar florestas virgens,

                             E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

                             O mais que faço não vale nada.



                             Como, pois sereis vós

                             Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

                             Para eu derrubar os meus obstáculos?...

                             Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

                             E vós amais o que é fácil!

                             Eu amo o Longe e a Miragem,

                             Amo os abismos, as torrentes, os desertos…



                             Ide! Tendes estradas,

                             Tendes jardins, tendes canteiros,

                             Tendes pátria, tendes tectos,

                             E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…

                             Eu tenho a minha Loucura!

                             Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,

                             E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…



                             Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

                             Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

                             Mas eu, que nunca principio nem acabo,

                             Nasci do amor que há entre deus e o Diabo.



                             Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

                             Ninguém me peça definições!

                             Ninguém me diga: “vem por aqui”!

                             A minha vida é um vendaval que se soltou.

                             É uma onda que se levantou.

                             É um átomo a mais que se animou…

                             Não sei por onde vou,

                             Não sei para onde vou

                             – Sei que não vou por aí!    



Outro poeta, António Gedeão, outro poema: “Eles não sabem nem sonham / Que quando um homem sonha / O mundo pula e avança/ Como bola colorida/ Entre as mãos de uma criança (…)”

     

A ideia é a ideia do sonho… Melhor dizendo: dum sonho em que se sonhe sonhar o que outros ainda não sonharam. Ou, como diz o poeta, sonhar como a criança, pois para ela o sonho ainda não se veste nem tem a forma da coisa a copiar, a imitar, a papaguear.

     

Então que frase ou slogan criar para convencer as pessoas da necessidade de serem criativas? Pois não sei. Não sei como posso ser convincente, quando o sonho, ele mesmo, já foi à escola para tirar o curso e ser homem de sucesso, como é o doutor, o engenheiro do 3.º andar. Talvez tenhamos que ser suficientemente criativos ao ponto de sabermos despir os sonhos (que os sonhos já se vestem todos – ou quase todos – em pronto-a-vestir), e depois sim (re)aprender a sonhar.

     

Mas que frase, que slogan há-de ser?! Pois ainda não sei, ainda nada me ocorre.

É-me claro, perfeitamente claro o valor da criatividade. A importância que ela tem para o reencontro do homem com ele mesmo – esse homem que ousou a poesia para se achar mais próximo dos deuses e do entendimento das coisas – a importância que tem (a criatividade) para que o homem deixe de ser colono dele mesmo e seja o indivíduo que busca ele próprio a luz do entendimento e da descoberta, incluindo, desde logo, a sua própria descoberta.

     

Mas que frase? Que slogan?

Pois não sei. Nem tu, nem ninguém, creio, saberá criar esse enunciado que seja suficientemente convincente da importância da criatividade.

     

Algumas vezes já deixei por responder a questões que colocas nos exercícios do Master. Esta é mais uma, a não ser que a frase que solicitas seja apenas para provocar uma mera discussão (que, em todo o caso, será importante…) sobre a importância reiterada da criatividade. Nesse caso, ela poderá ser esta: Morte aos papagaios! Liberdade para o Sonho!





      Fernando Hilário



(1) Deixei de fumar há um ano. Tenho vindo a apurar o olfato, o apetite tornou-se voraz e a barriga proeminente.