domingo, 26 de setembro de 2010

Justificações

              "Escrita de Mel e Água" foi o título genérico da colaboração que mantive no Jornal de Notícias, durante a última década de 1900. Ao jeito de quem mata saudades ou de quem retoma uma prática de escrita que, independentemente daquilo que é, é a sua, e também para a satisfação de alguns leitores, tidos como amigos, uns, e, admiradores "incansáveis", outros, alguns desses textos, crónicas e contos, voltarão a ser, aqui, publicados. À mistura, aparecerão outros textos inéditos, incluindo alguma poesia. Da leitura que for feita, poderá o leitor tecer, ou, tão somente, debitar (verter, jorrar...) os habituais comentários, pois há para isso espaço disponível. E eu hei-de lê-los todos e por inteiro, mesmo aqueles que, por razões de língua e linguagem, sejam difíceis de ler. Quanto à resposta, depende, mas o melhor é não contarem com ela...
             Cada fim-de-semana, haverá então Escrita de Mel e Água, para uma leitura que poderá ser doce como o mel e refrescante como a água, mas também poderão ser outros os efeitos e os sabores. O primeiro texto é um conto que  A malta do Montijo achou por bem publicar no seu Blogue, destaque que, obviamente, me sensibilizou e justifica a escolha. E aí vai ele 
              
                           

 O CONTO DO HOMEM QUE GOSTAVA DE BACALHAU COM TODOS
     
Um homem sentou-se à mesa para comer bacalhau com todos, mas estava sozinho. Mesmo assim, começou a comer o bacalhau com todos. Mas, como se não bastasse a coisa anterior, o bacalhau estava insosso, o azeite ácido de mais, as batatas negras, os legumes melados. Merda, disse o homem, isto está uma merda pegada! Mas, como se não bastasse, o empregado ouviu o homem a dizer merda, e veio perguntar o que se passava. O homem aproveitou para repetir ao empregado que o bacalhau estava uma merda. E disse-o alto, tão alto que todo o restaurante ouviu. O empregado achou que devia dizer ao gerente, e o gerente veio perguntar ao homem o que se passava. O que se passa é que isto está uma merda, uma merda pegada, disse o homem. E disse-o tão alto que o restaurante todo ouviu, incluindo a cozinheira, que era gorda, como são todas as cozinheiras. Está uma merda?!, perguntou ela. Não sei porque é que está uma merda!, conclui ela. Está uma merda, gritou o homem, tanto que o restaurante todo ouviu, e ouviu o polícia de giro. O polícia de giro entrou no restaurante para perguntar o que se passava. O homem aproveitou para dizer que tudo aquilo estava uma merda. Mas disse-o tão alto que o comandante da esquadra da polícia ouviu, e também o bispo ouviu, e o comandante dos bombeiros também ouviu, e todos vieram ao restaurante perguntar o que se passava.  À porta do restaurante, juntava-se uma multião de gente a querer saber o que se passava.  O homem aproveitava para gritar que tudo aquilo estava uma merda. E gritava tão alto que veio o presidente da república, o primeiro-ministro e o ministro da defesa e da ordem. Perguntavam o que se passava e o  homem dizia que tudo aquilo estava uma merda, uma merda pegada. Gritava tão alto que Deus acabou por aparecer no restaurante a perguntar O que se passa?!
O homem reconheceu Deus, cumprimentou-o com uma palmadinha  nas costas, Olá, como está?, e aproveitou para lhe dizer que adorava comer bacalhau com todos. Vamos a isso!, disse Deus. A cozinheira saltou para a cozinha. O empregado pôs uma enorme mesa, e daí a pouco estavam todos a comer. Algum tempo depois, o gerente veio perguntar Que tal? Está uma merda, disseram todos em uníssono. Mas estamos todos! disse o homem.