sábado, 29 de janeiro de 2011

NÃO

O texto deste fim de semana é muito simples. É um texto curto e incisivo. È uma afirmação categórica. É o manifesto da minha liberdade, o meu grito de Ipiranga, face à tormenta, à escravidão. È o restabelecer da minha inteligência, o restauro da minha sanidade mental. É reformular o meu ser, o abolir da castração. É refazer o respeito pelo meu tempo. Reconstruir os meus espaços, reinstituir a dedicação que devo dar a mim mesmo, aos outros e às coisas que me são sensíveis e gratas. É ter tempo para os meus cães, para os meus gatos, para as paisagens que estão nos sítios à espera de serem vistas. È, então, a dádiva das mãos, da visão e de todos os outros sentidos, a maior, a sua total disponibilidade…
Este texto é para dizer um NÃO ao correio eletrónico das coisas oficiais, do emprego e outras coisas que tais, que chega no fim de semana. É um NÃO à leitura desse e-mail. É um não à resposta desse e-mail.
É um NÃO à obrigação a que não sou obrigado.
A partir de agora, presidentes, ministros, instituições, diretores, coordenadores, colegas de trabalho e outros quejandos NÃO contem comigo: Ao fim de semana, eu NÃO abro o vosso correio eletrónico; NÃO fico feito parvo, preocupado a dar a resposta ou a preparar o que me é solicitado já para a segunda-feira.
Eu NÃO trabalho ao fim de semana, melhor dizendo: eu Não exerço uma profissão por conta doutrem ao fim de semana. O fim de semana é meu, NÃO é da instituição onde trabalho, NÃO faz parte do contrato laboral.
Para que se saiba e não haja dúvidas nem sequer ambiguidades, doravante só lerei os e-mail das coisas profissionais de 2.ª a 6.ª, nas chamadas horas de expediente.
Tenho dito.
Fernando Hilário
PS: Esta tomada de posição não tem a ver com o roubo que me fizeram ao salário (podia ter, mas não tem). Ela deve-se apenas à restauração de um direito que é meu e que eu vinha há algum tempo a delapidar. Esse direito é a minha Liberdade.

domingo, 23 de janeiro de 2011

TRISTE CAMPANHA TRISTE REELEIÇÃO

Eu creio que já foi tudo dito. De qualquer modo, direi ainda que foi uma campanha pobre. Em muitos aspectos, uma campanha grotesca. Sobre isto estaremos todos de acordo. É verdade que a campanha contou com a pimenta do José Manuel Coelho. É verdade que a campanha contou com a cidadania do candidato apartidário Fernando Nobre. Depois, tudo foi mais ou menos igual às campanhas anteriores: candidatos enredados em ideologias e discursos gastos e vazios; lavagem de roupa suja; telhados de vidro; rabos-de-palha, etc.
O aspecto mais positivo destas eleições é, sem sombra de dúvida, a elevada abstenção, e ela prova que alguns portugueses vão percebendo que os actuais políticos no poder não merecem consideração.
O aspecto mais negativo é, sem sombra de qualquer dúvida, a reeleição de Cavaco Silva, e ela prova que alguns portugueses ainda não perceberam que este homem não vale a consideração que lhe é votada.
 (…)

sábado, 15 de janeiro de 2011

PERSONAGENS DO TEMPO



Não tenho a certeza se o texto que hoje trago para o blogue foi ou não publicado na Escrita de Mel e Água. Mas é, de certeza, um texto desse tempo, ou seja, um texto escrito por volta dos últimos anos de mil e novecentos. Relê-lo trouxe-me a estranha sensação, já de outras vezes experimentada, de perceber que o tempo, por vezes, é em nada diferente daquilo que fora, a não ser no tempo maior (ou mais) que tem a sua própria idade. Mas o tempo é, também, ou é, sobretudo, o espaço onde nós nos encontramos a desempenhar um papel que ele, o tempo, nos tem, por uma qualquer razão, circunstância ou desígnio, reservado.


                                              
COM OLHOS DE MENINO

            É à janela daquele quarto daquela nova casa que ele ocupa a maior parte do seu tempo. Com olhos de menino, fica horas debruçado a ver as pessoas que passam naquela rua de muita gente. Se pudesse era para ali que ia; e havia de descer e subir a rua, cruzar-se com alguém, parar numa conversa amiga, tomar um café, comer um bolo na pastelaria da esquina. Às vezes, de tanto olhar a rua com os olhos de menino que ainda tem, imagina-se nela pessoa com pressa, pessoa como as outras pessoas com coisas para fazer; imagina-se a entrar numa loja para comprar uma qualquer coisa que fazia falta lá em casa, isto é: na sua casa onde em outros tempos vivia.
            A casa onde agora está não é sua: é uma casa grande de muita gente. Para esta casa não há nada para comprar e não há nada para fazer. É uma casa grande onde nada se faz, a não ser esperar que o tempo passe. Por isso, ele não gosta da casa por dentro; por isso, aquele quarto é quase tudo do pouco que tem; e aquela janela de terceiro andar é a sua televisão do mundo.
            Daquele quarto, quase nunca sai. Insistiu e fizeram-lhe a vontade em lhe trazerem aí as refeições. No quarto, recebe as visitas mensais dos filhos e dos netos. No quarto, atura o médico, a empregada que lhe muda a fralda, a directora que, numa cortesia agendada, vem a saber como é que está, como é que vai.
            Dantes, ainda ia até à sala de convívio jogar o jogo das damas, uma bisca ou suecada. Dantes, ainda falava de coisas com os outros homens e mulheres daquela casa. Agora, já não consegue. O quarto é tudo o que tem. Custa-lhe muito andar. Custa-lhe muito ir para a sala de convívio. Custa-lhe saber que o António e o Joaquim já não vão mais à sala de convívio. Custa-lhe fazer novos amigos. Custa-lhe voltar a falar da vida que teve. Tão longa, tão intensa, e ali tão brevemente narrada, à pressa, antes que tudo acabe.
            Aquele quarto é tudo o que tem: é o seu tempo real e imaginário; é a sua vida posta à janela; é o dentro e o fora, o interior e o exterior; é uma réstia do possível; é um faz-de-conta desejado, mas anedótico e ridículo da sua condição de pessoa da terceira idade.
            E quando a rua se despe de gente e a noite nela se deita como um rio de caudal negro onde ver a água é o mesmo que ver o fundo do rio, ele tem medo. Tem medo, tanto, que chega a fechar a janela para não ver o silêncio que vem subindo até à cama onde com ele dorme. E depois fica a noite toda à espreita, a ver se volta a ouvir mais uma manhã, mais um dia novo a vestir a sua rua. E ele sempre com os olhos de menino.

                                                                                              Fernando Hilário  

sábado, 8 de janeiro de 2011

O VALOR DA OPÇÃO

O CONTO DO HOMEM NA CHÁVENA DE CAFÈ

Um homem viu-se na chávena de café.
Não queria acreditar; por certo, sonhava; mas levou a colher ao fundo, trouxe-se para fora, olhou com atenção: era ele! Gesticulava, desesperado tentava dizer algo, percebia-se que gritava, mas tão pequeno era que não se ouvia.
Aquele homem era ele na chávena de café!
Incrédulo, voltou a pôr aquele corpo na chávena de café.
Porém, num terrível esforço, o minúsculo homem conseguiu agarrar-se ao bordo da chávena, e levantou uma perna… ia conseguir saltar, mas, com a colher, o homem empurrou-lhe o pé, uma mão, a outra mão e mergulhou-o novamente no café.
Durante algum tempo, impediu-o de emergir: mantinha-lhe a cabeça submersa; mas, num esforço titânico, o minúsculo homem esgueirou-se e agarrou-se à colher; tentava içar-se, aproximar-se dos dedos do homem, tocá-los. Mas o homem sacudiu a colher e fê-lo cair outra vez no café.
Não podia deixá-lo sair, descer ao pires, passear pela mesa...; alguém podia ver, não saberia dar explicações; e até lhe parecia ter já atraído a atenção do empregado e do casal que acabara de entrar.
Não lhe restava senão afogá-lo no café.
Tapou a chávena com o pires. Mas algum tempo depois, já o pires vibrava, tremia; e parecia-lhe que o pequeno homem acabaria por erguê-lo, deitá-lo por terra. Reforçou então o peso com o maço de cigarros e o isqueiro. Mas já temia que não fosse ainda peso suficiente. Lembrou-se do molho de chaves; tirou-as do bolso e substitui o maço de cigarros por elas.
Não tinha outra solução. Era impossível deixá-lo viver!
Pensava agora se já estaria afogado…
Espreitou: uma mão aberta desaparecia no líquido negro; algum tempo depois, o corpo boiava de costas.
O homem levantou-se, deixou uma moeda na mesa, e abandonou o café.

               
Fernando Hilário, “O Conto do Homem na Chávena de Café”, Histórias Exemplarmente Imperfeitas