sexta-feira, 29 de março de 2013

do brilho necessário

O texto que se segue foi publicado no Jornal de Notícias em outubro de 1993. É provável que o leitor encontre nele um qualquer desassossego...

                                                                      A IDEIA
Naquela manhã, à hora a que as flores se abrem e os animais se animam, um homem chegou, anunciando que tinha uma ideia. Os outros homens pararam o início do dia e todos se puseram a escutar atentamente o homem da ideia.
A ideia, apresentada com especial saber, parecia uma ideia boa, ou mesmo uma ideia brilhante. E todos os homens a aceitaram, entusiasmados. Alguns até lamentaram o facto daquela ideia não ter aparecido há mais tempo. E, a partir desse dia, foi essa ideia que passou a nortear os homens, ou, dito de outro modo, os homens passaram a nortear a sua vida por essa ideia, que lhes parecia brilhante e necessária como o sol dessa manhã.
Mas os dias passaram, nem muitos nem poucos; passaram os dias exactos para que os homens começassem a dar-se mal com a ideia, a não saberem nortear a sua vida pela ideia, a não aceitarem a ideia para norte das suas vidas.
 
Os homens andavam sem saber o que fazer. Os dias nasciam e eles nem viam as flores, que continuavam a desejar o sol, a aceitá-lo, como antes eles aceitaram aquela ideia, que acharam brilhante.
 
E, cada dia que passava, os homens mais confusos e revoltados se mostravam. Até que todos pararam o início dos dias e se reuniram para discutir a ideia.
Juntaram-se, então. Mas em tão grande alvoroço que ninguém conseguia discutir fosse o que fosse. Apenas diziam que todo o mal estava na ideia, naquela ideia que um dia um homem lhes trouxe. E pediam a cabeça do homem, a morte da ideia; e gritavam palavras de fúria, palavras de guerra.
Mas um homem, de entre todos, conseguiu erguer a voz para serenar todas as outras.
E disse:
– O nosso mal não está na ideia que o homem nos trouxe. Não é dela a culpa de não sabermos o que fazer nem para onde ir. O mal está em nós, que aceitámos uma ideia que só agora pretendemos discutir.
– Então, tu o que propões? – questionou outra voz.
E o homem, que erguera a voz para serenar todas as outras, e que tinha os olhos da cor das manhãs claras, disse:
– Eu proponho que cada um apresente uma ideia. Que todos discutamos serenamente essas ideias, ou mesmo mais ideias, de maneira que cada um de nós possa ir construindo a sua ideia.
E assim se fez.
E quando a noite caiu, os homens ainda estavam reunidos a discutir as ideias. Muitos sonharam com elas. Algumas até lhes pareceram brilhantes para nortear as suas vidas, ou, melhor dizendo, as suas ideias.
Na manhã seguinte, ao início do dia, todos partiram. Mas quase todos ainda iam às voltas com as ideias, o que, em nosso modesto entender, era bom, muito bom que assim fosse.
   Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, Jornal de Notícias, sexta-feira, 22 de outubro de 1993       
  

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

1991-2013 ou 22 anos depois…

                                                                       O dia dos sustos

Num determinado tempo da minha meninice, julguei que o Carnaval fosse o dia dos sustos. Os mascarados existiam para nos assustar. Por isso é que iam no encalço das pessoas e, em piruetas desconformes e medonhas, lançavam-lhes o feio das suas figuras. Depois, explodiam em terríveis gargalhadas, felizes pelo efeito conseguido.
Tinham essas exibições qualquer coisa de tétrico, de macabro, de mortuário. E eu tinha-lhes muito medo.
Na raiz desta ideia estavam certamente as primeiras máscaras que eu vi e cuja impressão perpetuou algum tempo na retina. Eram feias carantonhas, máscaras de um grotesco sem graça, negras, brancas, vermelhas, resultado de uma plástica que conciliava o engenho local com os materiais possíveis. No fundo, eram criações na linha dos espantalhos. Mas espantalhos vivos, caveiras movíveis, talhadas na casca esbranquiçada de uma abóbora, duendes, ogres, bruxas, fadas más, piratas de olho de vidro e de perna de pau, mafarricos, fantasmas feitos de pano de lençol e outras demoníacas figuras pintadas a carvão e rouge.
Só mais tarde, a indústria trouxe as máscaras de papelão, de cartão, de plástico, com cores brilhantes e fixas, resistentes à água atrevida das seringas, e tão reais algumas que pareciam a sério.
Começava, assim, a mascarada em pronto a servir, a possibilidade de cada um escolher a máscara a seu gosto, sem apelo pessoal a grandes engenhos e artes.
Nesta altura, eu já era rapaz de escola primária. E para entrar na brincadeira, economizava nos pirolitos, nos chupa-chupas, na fava-rica e outras gulodices. Ia então à venda e comprava uns tostões de estalinhos, bombinhas, bichas-de-rabiar, serpentinas para os automóveis levarem e, sobretudo, uma bisnaga ou seringa. A melhor que tive foi uma tipo pistola James Bond. Infalível, de esguicho veloz, longo e certeiro.
Depois veio o tempo de olhar para a sombra. E o Carnaval, como qualquer outra festa profana, era sempre aguardado com ansiedade. Com ele vinham os bailes; vinham outros contactos e aberturas que ao tempo tinham tanto de proibido como de desejado. E as máscaras, o disfarce, davam jeito… Quanto mais não fosse, davam alento aos tímidos e mais “lata” aos que já a tinham.
Era, enfim, tempo de certos escapes e avanços, como ainda o é hoje, e o é ainda de alguma permissividade e de certos exageros.
E depois desse tempo, o Carnaval foi-se estreitando ao convívio dos amigos, com uns copos, um chouriço em álcool, caldo-verde e alguma música.
Mas este Carnaval de 1991 trouxe-me memórias bem longínquas. Memórias desse tempo da minha meninice. E pensei mascarar-me. Não para ir a um baile de máscaras ou tomar parte em um desfile de rua. Nada disso. Pensei mascarar-me para ir meter medo a certos homens…
Mas por pensar que não há nenhuma máscara capaz de lhes meter medo, desisti.
 
 
                                                                                                                      Fernando Hilário
(Crónica publicada na rubrica “Escrita de Mel e Água” do Jornal de Notícias,  a 14 de fevereiro de 1991.)

sábado, 22 de dezembro de 2012

DUAS CRÓNICAS NATALÍCIAS

EU ACREDITO NO PAI NATAL
 
 
Todas as casas que habitei na minha meninice tinham chaminés insuficientemente largas para que um homem com um saco cheio de coisas descesse por elas e deixasse, ali, no sapatinho posto no fogão, as prendas de Natal. Tanto mais que à minha retina sempre se vinculou uma figura de homem rechonchudo e atafulhado em roupa.
 
Mas nem por isso deixei de acreditar no Pai Natal. Pelo contrário. E sempre pensei que um homem do seu gabarito não se atrapalharia com coisas tão banais como são as leis da física: encolheria; ou operaria outro qualquer malabarismo, arte mágica ou milagre que lhe permitisse, a ele, homem de palavra, dar resposta às cartas de Natal.
 
E hoje, já longe esse tempo em que um ruído, que os pais confirmavam vir da cozinha, nos fazia estremecer o coração e correr ao encontro do desejo ou do sonho materializado numa prenda de sapatinho, hoje, também já passada a dúbia e incerta juventude, continuo e quero continuar a acreditar no Pai Natal.
 
De certo modo, o meu imaginário da infância a isso obriga -- repito: sempre tive o Pai Natal na conta de um homem de palavra. Também sempre o conheci com aquelas barbas fartas e brancas, a fatiota branca e vermelha e um ar todo pimpão. Chegou àquela idade e por ali ficou, rijo como um pêro, sem mais mossa do tempo. Faz, decerto, um regime alimentar muito especial. Provavelmente, à base de caldos quentes, de legumes fresquíssimos e despoluídos e de iogurtes com pedaços de fruta dos mais fertéis e viçosos pomares, e não deve abdicar de um apurado exercício físico, levado a cabo em espaços de eleição.
 
À volta disto deve andar o segredo da sua longevidade. Certo é que também nunca o via a fumar, nem cachimbo, modalidade que até nem lhe ficaria mal. Tão pouco levará uma vida de "stress" -- mas para isso basta não ter de andar por cá, nesta balbúrdia de barulhos, fumos, cotoveladas e confusões de políticos e de outros tipos complicados. A vida dele é outra: é dar prendas; e dar prendas dá muita felicidade.
 
Para além disto -- que não é pouco --, é ainda um homem letrado e douto, altamente viajado, poliglota e bem-humorado.
 
Mas, apesar de me ser tão querida a sua figura, há um reparo que lhe quero fazer, sim, a si, sr. Pai Natal. E o reparo vai para a falta de atenção que eu julgo ter com certas questões de interesse capital.
 
Ora veja! Sendo o senhor uma figura carismática do jet set mundial, tendo os dotes que tem, como é o caso de tanto entrar numa chaminé portuguesa como numa da Conchinchina, estando, obviamente, a par de tudo o que se passa neste planeta (e o que se tem passado é grave, tão grave que qualquer dia nem as suas renas terão pasto...), não lhe parece, sr. Pai Natal, que, tirando partido dos seus poderes e da sua influência, indiscutivelmente maiores que as de um Clinton, de um Cavaco Silva ou de um Delors, devia actuar de outra forma?
 
Pergunta-me, o senhor, do alto das suas barbas e a braços com a sua tradição como? E, de algum modo, também se indigna V. Ex.ª com a minha impertinência, achando que sempre cumpriu o seu papel de distribuidor anual de prendas, e que eu nem sonho a trabalheira que isso dá, sobretudo quando há por aí quem peça tantos brinquedos e outras coisas que não há saco que resista.
 
Bem. Vamos por partes. Primeiro, gostaria de dizer-lhe que Natal não é só em Dezembro... Não que deixe de ser em Dezembro, mas também pode ser em qualquer outro mês, dia ou hora do ano, de qualquer ano. Não sei se já sabia isto?...
 
Devia, então, haver mais prendas ao longo do ano, sobretudo para quem as mereça ou delas precise.
 
Mas está, o Pai Natal, a pensar: -- Que prendas?!
 
Olhe, dar, por exemplo, paz a um povo que esteja em guerra. Ou oferecer alívio a quem sofra. Presentear com pão quem tenha fome. Distribuir por aí fraternidade, quem bem precisa é. Dar casa a crianças sós...
 
Está a ver que belíssimos presentes o Pai Natal pode dar em qualquer altura? Tem é de estar atento. Tem de ser suficientemente sensível para que a sua sacola possa consolar os verdadeiramente necessitados.
 
Parece-me, pois, que o seu papel não se esgota na resposta às cartas que directamente lhe são dirigidas na época natalícia. Até porque, e creio que já percebeu, há uma real necessidade de ser sempre Natal. Não acha? E há quem, pura e simplesmente, não saiba ou já não se lembre que há Natal. Há até crianças que nem sonham com o Natal. Para esses, o seu humanismo é necessário, tão necessário como a luz do Sol, o ar ou a água.
 
Mas perguntará ainda o Pai Natal : -- Porque carga de água tudo isso terá de ser obra do meu saco?!
 
Olhe, justamente porque o seu saco não é como o dos outros: no seu cabe sempre mais uma prenda, sem impostos nem contrapartidas; no seu saco, porque é seu, cabem a paz, a dignidae e a alegria de um mundo inteiro.
 
O seu saco, querido Pai Natal,  pode ser desinteressadamente altruísta e criterioso, ao passo que o dos outros (nós sabemos que é assim) é egoísta e interesseiro.
 
Por outro lado, e muito bem feitas as contas, só nos resta acreditar em si. O senhor já provou que faz o impossível. Olhe que é obra descer em tantas chaminés e por algumas bem estreitas! E uns tantos outros, também com poderes, nem o possível fazem!
 
Fica, pois, aqui, o meu apelo ou a minha carta de Natal, como queira: diversifique em quatidade e qualidade o conteúdo do seu saco! Apareça mais vezes!
 
E, desde já, o meu muito obrigado.   
 
 
 
 
Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, Jornal de Notícias, Última Página, 18 de dezembro de 1992 (Manteve-se a ortografia original)
 
 
 
 
 
PRENDA DE NATAL
 
 
O Pai Natal deixara-lhe no sapatinho um rótico, nem mais nem menos.
 
Um rótico! Que maravilha!
 
Nunca tinha tido um rótico! Nunca sonhara vir a ter um! Nunca ninguém se lembrara de lhe oferecer um rótico! Agora, finalmente, tinha um rótico. Um rótico novinho em folha. Um rótico de qualidade. Um rótico de marca. Um rótico de etiqueta confirmada. E um rótico era coisa que não estava ao alcance de todos, pois que nem todos são especiais para receber, para ter um rótico. Só se oferece um rótico a pessoas de qualidade, a pessoas sensíveis, a pessoas de gosto refinado, a pessoas superiores... E ele tinha, finalmente, um rótico.
 
O reconhecimento da pessoa invulgar que ele era, viera pois nesse Natal. E se foi para ele uma surpresa, uma agradável surpresa, uma honra, uma distinção que jamais iria olvidar, era, diga-se, da mais não sei quê (elementar) justiça que ele fosse cotemplado com um rótico. De resto, tratava-se de um gesto, de um reconhecimento que já tardava, podendo-se até ver, em tal demora, uma pontinha de injustiça. Porém, nesse Natal, fez-se justiça: merecedor indúbio de um rótico, ele teve-o, e, assim, reparou-se o dano da delonga, ao mesmo tempo que a tremenda sabedoria popular ganhava, como é seu apanágio, vulto: Mais vale tarde do que nunca
 
Não foi sem expectativa, nem sem pontinha de nervosismo que ele desembrulhou a caixa azul com laçarote dourado onde se guardava a magnífica surpresa. Abre! Abre! Abre! -- gritavam-lhe entusiasticamente os seus beneméritos. E, ultrapassada a atrapalhação do papel e da laçarada, chegou finalmente ao cerne da coisa.
 
Olhou. Voltou a olhar. É um rótico! -- disse um dos beneméritos, que não resistiu por mais tempo à demora da revelação. É?! É. Pois claro que é. Sem dúvida: é um rótico! Um merecido rótico. Indiscutivelmente.
 
Contra os factos não há argumentos: aquela coisa era um rótico. Pegou nele com jeito indefinido. Pôs-se a vê-lo, rodando-o nas mãos, sob o olhar admirado. Tomou-lhe o toque pelo tacto. Levou-o ao nariz para saber do odor, do cheiro indescritível. Beijou-o, para um tacto mais profundo. Repetiu tudo. Com admiração indescritível, repetiu tudo, isto é: viu, voltou a ver; tocou e voltou a tocar; cheirou, voltou a cheirar; levou-o aos lábios e voltou a beijá-lo. Depois, depois abanou-o levemente, como se o fizesse por medo; de seguida, abanou-o mais: sacudiu-o com algum fervor, como se pretendesse que o rótico se pronunciasse.
 
Mas um rótico não fala, nem chia. Um rótico, qualquer rótico, é mudo. O rótico é o silêncio em ele mesmo.
 
Dentro daquela noite de Natal, os seus beneméritos iam-lhe seguindo os movimentos, a surpresa, o entusiasmo, a admiração, a contemplação, o espanto. Ele recebera, finalmente, um rótico; o rótico que todos os beneméritos em uníssono achavam indubitavelmente merecido.
 
 [...]
 
Mas ele não sabia o que era um rótico, para que servia, o que haveria de fazer com ele, nem porque lhe haviam dado aquela coisa a que todos -- menos ele --, convicta e entusiasticamente, chamavam rótico, e aquele, segundo lhe diziam e reiteravam, era um rótico fora de série, um rótico à medida de um homem como ele, um homem fora de série.
 
Mesmo assim, encostou o rótico ao peito, agradeceu e foi-se deitar.
 
Quando chegou ao quarto, o quarto estava frio. Mesmo sem entrar na cama, sentia-a na frialdade dos lençóis. Por causa do rótico, esquecera-se de vir animar a lareira do quarto, e agora o quarto era ali um ar gélido. Mas, tomado de uma ideia brilhante, riscou um fósforo e relançou o fogo.
 
De resto, todo e qualquer rótico arde muito bem.
 
E aquele, até porque era um rótico de marca, de singular etiqueta, também ardeu muito bem.
 
 
 
Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, Jornal de Notícias, Última Página, 26 de dezembro de 1997 (Manteve-se a ortografia original)
     
 
  

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A LÓGICA DAS MIGALHAS

Ficou aqui tempo bastante, creio eu, em exibição, sem mais nada que o perturbasse, o título das Histórias exemplarmente imperfeitas. Sei que houve um número simpático de leitores que aderiu ao meu apelo (“Leiam as minhas histórias”), sei que alguns gostaram, porque me deram conta disso, mas a maioria remeteu-se ao costumeiro grandessíssimo silêncio que estas coisas normalmente trazem. Gostava que as reações às HEI tivessem sido mais significativas, me trouxessem novas sobre o que fora a receção, produzissem mais ideias… Mas não me resta senão contentar-me com os efeitos reais produzidos, agradecer os que tiveram a amabilidade de ler, sobretudo, àqueles que, tendo lido, alguma coisa me disseram sobre o que leram e como leram. Todavia, as Histórias continuam à vossa disposição.

E, adiante, mudemos de assunto.

               
Também há uns tempos atrás, entre razão e ironia, deixei aqui expressa a ideia de que as dívidas, se são soberanas, não se pagam, ou, pelo menos, não se devem pagar ao jeito de quem transforma o país num miserável caloteiro, penhorando-se-lhe o corpo e a alma, para a voragem e gáudio dos onzeneiros.

“Não batam mais no ceguinho”, bem podia ser o título do filme português da atualidade, tendo como personagens protagonistas o País e o Governo. O guião é assaz simples, ainda que comovente: de um lado está o Governo e os seus simpatizantes, na obsessiva deriva, que uns identificam de bom aluno ou de tipo honrado e cumpridor, outros de teimosia de jumento, em querer pagar a dívida, e, do outro lado, o País inteiro a reclamar os danos que a empreitada, chamemos-lhe assim, provoca.   

Eu gostaria de acreditar nos desígnios humanos, patrióticos e históricos com que o Governo parece tomar a peito a boa governação do País e que esse, tal como apregoam, é o caminho. Gostaria, mas não posso, pois basta-me ver a miséria humana em que se encontram as inúmeras famílias portuguesas para perceber que esse não é seguramente o caminho… E essa não será, então, a política inteligente… e humana.

Nesta demanda, dir-se-ia esquizofrénica, do querer pagar a dívida a qualquer preço, os políticos no Governo têm descaracterizado o País pelo empobrecimento e delapidação das estruturas e das instituições sociais, culturais e científicas. Os próprios modelos conceptuais de ensino, saúde, justiça, prestação de serviços sociais e da organização e administração territorial têm sido alterados ao arbítrio do Governo e da maioria parlamentar que o sustenta, sem que, efetivamente, haja um indispensável contraditório que aconselhe ou desaconselhe as medidas tomadas. E isto pode parecer, mas não é um quadro de ficção: é a mais triste e condoída realidade (…)

As crises são, sempre, em último caso e para efeitos objetivos, da responsabilidade dos governantes e não dos governados. A estes últimos, e não a todos, caberá apenas, quando muito, uma responsabilidade moral.  

O sacrifício que se está a pedir aos portugueses, que os políticos transformaram em vítimas da crise que criaram, é tremendo: faz da sua existência um horrível e hediondo sofrimento, e deixará marcas indeléveis nas suas vidas.

Para além disso, parece-me um sacrifício a todos os títulos inglório. Para os atuais governantes, o país reduz-se à dimensão de um porquinho mealheiro que se engorda à custa da miséria das pessoas, sobretudo das mais carenciadas, ao mesmo tempo que a casa coletiva – Portugal, entenda-se – se arruína também.

Mas era bom que eu me enganasse.

Fernando Hilário

sábado, 31 de dezembro de 2011

Um poema para 2012

Temos as mãos e temos os olhos,
a pele e o sorriso, destaque-se o sorriso.
Mas temos as manhãs para celebrar, sobretudo
para celebrar. E as noites
para o voo azul das aves,
tão simples como isso.
Também temos, entre um tempo e outro,
desenhadas as tardes. E as estações, todas
as estações, que cada estação a outra estação
sucede espanto natural.
E temos os rios, os rios que são lágrimas
da alegria jorrada das fontes,
quaisquer que sejam. E os mares
e os oceanos, imensos campos de flores de sal
onde todas as coisas vêm sem cessar
ao seu encontro. E temos o vento, a palavra,
doce e dura, mãe dos idiomas. E a nós
temo-nos e aos outros todos os que habitam,
animais longe ou de nós próximos,
tão simples como isso.
Temos as montanhas e os vales, os prados,
as colinas, os cumes e sopés, vertentes e ladeiras,
astros; a aldeia e as cidades, a casa, o quarto,
a lareira, a mesa, a aliança, as alianças todas
de todas as colheitas, de todas as conquistas, da paz.
Tão simples como isso.
Da semente ao fruto, temos a viagem, da terra
à boca, da terra ao corpo, dos pais aos filhos,
da terra à terra, tão simples como isso.
Temos pontes que seguras são o caminho
da música, e estradas outras são rendas
de bilros, telas, tintas, a pintura, ou o que é
das mãos o trabalho das coisas em coisas transformadas.
Tão simples como isso. Temos tudo e o que não
temos do gesto depende, tão simples como isso.

HILÁRIO, Fernando – Tempo Instante. Lisboa: Instituto Piaget, 2033, p. 72. ISBN: 972-771-682-2

BOM ANO!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ACABAR COM A DÍVIDA E SAIR DA CRISE

Brincando com as palavras e os significados delas, eu diria que uma dívida, quando é verdadeiramente soberana, não se paga. E não se paga, precisamente por ser tratar de uma dívida soberana.

Ou é soberana, ou não é!

Acontece, porém, que em Portugal e na Europa já nada é soberano, nem os países, nem as dívidas, nem os políticos, nem os sindicalistas, nem as pessoas...

Por cá, enquanto o Governo anda a esquadrinhar modos e maneiras para conseguirmos pagar a dívida soberana, a soberania do País vai indo por água abaixo.

Com ela, isto é, com a soberania a ir por água abaixo, vai o país e vão os portugueses – vão os anéis e os dedos…

É que quanto mais pagamos a dívida, maior é a crise; ao ponto da falência do país, das instituições, dos serviços e das pessoas, no presente, ser já uma realidade; ao ponto de não se vislumbrar como vai ser, no futuro, o futuro, mesmo que, entretanto, se consiga pagar a dívida do presente, no presente.

(…)

Na sua demanda obsessiva em desencantar os modos e as maneiras para pagarmos a dívida, o Governo, naquilo que considero um deslumbre só ao alcance de alguns (dos obviamente mais dotados), sugere a emigração. De imediato, a começar pelos professores e, depois, talvez por decreto exarado em brilhante Conselho de Ministros, extensiva a outros funcionários públicos. Por exemplo, do Ministério da Economia e das Finanças, para, quiçá, irem trabalhar para a Alemanha ou para a França… E que mobilidade seria! Que desempenho! Conseguem ver os nossos compatriotas ao balcão de uma repartição francesa ou alemã, a aviar cidadãos, em bicha, com papéis de burocracias locais na mão? Conseguem?

Não conseguem?!

(…)

É verdade que este Governo tem pensado muito (obsessivamente, desmesuradamente, diria até estupidamente…) sobre como pagar a dívida para sairmos da crise. Mas o Governo não pensa ou não sabe pensar como havemos de deixar de pagar a dívida para podermos sair da crise. Diria que esta dialética, mais do que um mero trocadilho, se traduz, em todo o caso, na frase popularucha “É muito areia para a minha camioneta”, frase que o Governo, obviamente, parafraseia e subscreve.

O Governo (não é inédito o que vou dizer) é um aluno obcecado em agradar aos mestres e mesmo àqueles que exercem apenas a função de prefeitos; bajulador, beija-mão, etc. Aluno que não levanta a cabeça, que a mantém baixa, que a mantém cabisbaixa, que mantém o olhar a olhar por baixo; daí que este aluno não é ave que aprenda ou que saiba voar sozinha, a voar alto, a voar soberanamente.

Por isso (também não é totalmente inédito o que vou dizer), eu proponho a emigração compulsiva, espécie de deportação, de degredo para este Governo. E sugiro, por exemplo, que o Ministro José Relvas vá recitar versos do Guerra Junqueiro e do Dantas para o Metro de Paris. Acho que ia sair-se bem. E sugiro, por exemplo, que o Ministro Vítor Gaspar, que se exprime muito claramente e muito pausadamente, vá ensinar a tabuada para uma escola básica do interior da Alemanha, de preferência da antiga Alemanha de Leste. E sugiro, por exemplo, que o Primeiro Ministro Passos Coelho vá para África, por hipótese meramente académica, para a Guiné-Bissau, para cumprir a sua deriva de ser ainda mais africano. (Podia sugerir mais, mas fico-me por aqui.)

Talvez assim pudéssemos acabar com a dívida e a crise soberanas.

Vilar do Monte, 30 de dezembro de 2011