sábado, 30 de outubro de 2010

NA APARÊNCIA DAS COISAS

Às vezes, metidos por aí, por espaços da realidade tangível, da casa, da rua, da cidade, enfim, de lugares do mundo onde nos podemos encontrar, deparamos com um tempo, aparentemente, em tudo igual a um tempo que fora outrora. E então parece que tudo se veste das mesmas roupas, que há um hálito comum e que todos os gestos são rigorosamente os mesmos. É: por vezes, achamos que tudo acontece num momento plasmado. E achamos tudo tão igual na aparência das coisas, que apenas nos cumpre ficarmos gratos da memória que temos.


PORQUE TODOS SOMOS CRIANÇAS

Trazem o tempo dos dias pequenos e frios; levam longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas!
Servem-se embrulhadas em frágil cartucho de papel de jornal, como um cone, onde se encastelam quentinhas e onde não interessa guardá-las por muito tempo, pois que são boas quentes. Quentes e boas!
Comem-se pela cidade, numa ginástica ágil. Porque são quentes, queimam os dedos, e porque assadas, com a casca da cor da cinza, sujam-nos. Mas aquecem-nos as mãos, o mesmo que dizer o coração. Quentes e boas!
Enchem-nos a boca como um pão farinhento, suavemente doce, suavemente salgado. Quentes e boas!
Vende-as o vendedor de castanhas, numa azáfama de fogo e fumo. Quentes e boas!
A criança que passa com a mãe, não sabia que se assavam e vendiam castanhas na cidade. Quis ver o que era, perguntou, pediu à mãe… Quentes e boas!
O vendedor de castanhas alimenta o fogo, dá-lhe vida; malabarista, faz carambolar as castanhas na caçarola. Hão-de assar todas por igual. Quentes e boas!
Os olhos da criança ardem no rubro do ritual; aprendem-no, guardam-no – a cor, os gestos, o cheiro, a fala. Quentes e boas!
Fogareiro grande; réplica de uma antiga máquina a vapor. Quentes e boas! Cabeça de comboio, como se fosse levar longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas! Quentes e boas! Como se fosse por trilhos a refazer viagens de outrora, de tempos que se perdem no volátil, no fumo dos tempos. Quentes e boas! Quentes e boas!
Donde vêm os vendedores de castanhas? A criança pergunta. Mas não há uma resposta. Vêm certamente dos sítios que se diz serem tão fantásticos que sempre se guardam em segredo. Sim, talvez não interesse saber exactamente donde vêm… Quente e boas!
Cartucho grande? Pergunta o vendedor. O vendedor é o corpo grande de uma castanha assada que se dá em cada cartucho, como um cone de um labor encastelado. Quentes e boas!
Quentes e boas! Depois, então, a ginástica ágil dos dedos, o gosto a pão doce e salgado – o calor de uma relação a inscrever-se, talvez indelevelmente, no imaginário da criança. Quentes e boas!
E o tempo dos dias pequenos e frios há-de repetir-se num ciclo redondo ao jeito das castanhas que se querem quentes e boas. Até lá, até ao tempo de cada vez ser tempo de castanhas assadas, andará no ar o cheiro do carvão em brasa, em cinza, como se fosse um comboio a ligar tempos e lugares, com a cabeça, máquina a vapor, a espalhar memórias, a marcar o rumo e o ritmo das coisas simples, continuamente a apregoar Quentes e boas! Quentes e boas! Quentes e boas!
Fernando Hilário, Jornal de Notícias, Escrita de Mel e Água (Não sei da data em que a crónica foi publicada, mas é provável que tenha sido em: Outono/Inverno da década de 90 do século XX).
 

domingo, 24 de outubro de 2010

IDEIAS GENIAIS

Se avaliarmos o exercício da política e os factos políticos dos últimos 30 anos, é fácil perceber que os políticos tornaram-se uma classe de fiteiros a produzir fitas e mais fitas. E eu abomino fiteiros. E abomino as fitas que fazem. Ultimamente, os fiteiros e as fitas têm ultrapassado as marcas do tolerável. A fita que os vários fiteiros estão a protagonizar é das mais ridículas da nossa História recente. É claro que o país já está farto de tantas fitas e de tantos fiteiros. Mas, entretidos com suas fitas, os políticos, porque são fiteiros, ainda não perceberam isso...
Em 4 de Outubro de 1990, no Jornal de Notícias, do seu ano 103/, no n.º125, publicava-se o texto “A ideia”, na rubrica Escrita de Mel e Água.
Não sei dizer a razão por que escrevi esta crónica com tal personagem e semelhante enredo. Relida assim à distância, parece-me coisa rebuscada para tortura de leitor – mas isso cada leitor o dirá. Destaco, porém, a ideia genial da nota em rodapé.

A IDEIA
O ministro acordou com uma ideia. Tomou o pequeno-almoço com a ideia. Uma ideia genial. Tão genial que até tinha dificuldades em digeri-la. Tão madrugadora a sua cabecinha que até o espantava. Mas o ministro já estava bem desperto: fizera as necessidades, tomara banho e exalava colónia e “after shave”. Já comera os flocos de cereais, o “bacon” e os ovos, os “croissants” com manteiga, as compotas com ricas e finas fatias de pão, uma ou outra bolacha de água e sal, e já saboreara um café moído à mão. Rematava agora com um delicioso cigarro.
Até a boa serviçal estranhou o seu ministro, habituada a vê-lo entornar o sumo de laranja pela gravata abaixo, a deixar que os flocos lhe fossem parar ao goto, a salpicar o colo de compota, a besuntar-se de manteiga e “bacon”, a dizer mal dos ovos mexidos e do gosto do café, a chamar nomes feios aos jornalistas. Mas, nessa manhã, o sr. ministro era um homem diferente: um homem cúmplice entre o compenetrado e o desenvolto.
E a ideia era tão genial! Achava-a tão genial! Tão genial que até receava que não viesse a ser digerida pelos seus colegas ministros, incluindo o primeiro-ministro. Talvez não alcançassem o seu alcance. Talvez não dimensionassem cabalmente a sua dimensão. Talvez não assimilassem a essência intrínseca da sua substância. Talvez não aquilatassem da vital importância da ideia para a economia, para a saúde, para o comércio, para a defesa, para a cultura, para a educação, para o incremento, para o desenvolvimento, para o passado, para o futuro e para o presente do país. Talvez não aquilatassem das frutuosas implicações que o seu implemento traria ao nível da NATO, da OUA, da CEE, UNICEF, FAO, OPEP, ONU, OCDE, ANC, FMI… da Europa e até do Mundo.
É, não iriam percebê-lo. E o pior é que o achariam mal da tola. Por causa da ideia genial, perderia crédito. E talvez até viesse a perder a pasta. Talvez vissem nele um vendido à oposição. E não terminaria o mandato.
Não há hipóteses, comentava de si para si. Não me vão acreditar, comentava ainda de si para si. Dirão que estou passado, comentava. É de mais!, comentava, de si para si.
Mas, de repente, a luz, coada pela vidraça dos vidros duplos e fumados da janela, cintilou e luziu esclarecedora no serviço da finíssima louça do velhíssimo e elegantíssimo serviço de Gilman & Cta de Alcobaça, de Sacavém, de Portugal…  E  se eu expusesse a genial ideia ao chefe de gabinete e aos secretários?! perguntou ele, a si mesmo. Que disparate! – conclui ele, para si mesmo. Então eu agora ia pedir pareceres, dar satisfações aos meus subalternos?! Não. E afastou essa ideia. Mas… espera! – disse ele. E a serviçal esperou. Diga, sr. ministro – disse a serviçal. Digo o quê?! – perguntou o ministro. Diga por que espero – disse ela. Não digo, que isto para ti é “top secret”! E a serviçal desandou, com a manteigueira de cristal na mão.  
E o ministro continuou a pensar. A não ser que eu coloque a ideia ao ministro da… É isso! É isso mesmo! Ele é o único capaz de atingir a amplitude da minha ideia. Já em Coimbra o tipo era uma barra. Sem dúvida! É a ele que eu vou expor a minha genial ideia. Assim, explicada por ele, o primeiro-ministro topa-a à primeira.
E o ministro já se imaginava na assembleia, ora, numa data de assembleias, a falar da sua genial ideia. Via-se, S. Excia, em hemiciclos pejados de deputados a roerem-se de inveja – uma deputada mais que tal, toda embevecida. Via-se estampado nos jornais. De cá e de além fronteiras. A abrir os telejornais. Via-se em todas as cadeias de televisão. Via satélite, por cabo e por tudo. Do Iraque à América, passando pela Grã-Bretanha, pela Rússia e afins; o mundo inteirinho a seus pés. Um nome de pedra e cal na história. Em letras de oiro. Garrafais. Da lei da morte libertado. No “guiness bock”. Em estátua. No Chiado, tomando café à mesa do Pessoa, num tu-cá-tu-lá, pleno de propósito. Embalado nos braços do Infante. Num fraterno abraço ao Marquês de Pombal. Em Guimarães, com D. Afonso Henriques, empunhando com ele a espada.      
Mas reflectiu e disse que não. Não! Não vou meter o tipo nisto. Se o primeiro-ministro viesse a mensurar o peso da minha genial ideia, nunca acreditaria que ideia tão genial fosse minha. E com a capacidade de argumentação que o tipo tem, bem visto como está (toda a gente sabe que o tipo é o menino bonito do primeiro, há até quem diga que devia ser ele o primeiro-ministro…), ora, aproveitava-se logo: palmava-me a ideia genial e eu ficava sem a minha genial ideia.
E apagou o cigarro. Pegou na pasta. E quando a caminho do ministério, já ia com outras ideias.
NOTA: Esta história é pura ficção. Qualquer tentativa para identificação das personagens é pura e estúpida especulação, incluindo a boa serviçal ou mesmo as ricas e finas fatias de pão.     

sábado, 16 de outubro de 2010

DESAFORO, ROUBO e INDIGNAÇÃO


No JN de 29 de Janeiro de 1993, publicava-se, em Escrita de Mel e Água, a crónica “Do outro lado do Atlântico”, um texto alinhavado em tom irritadiço, algo azedo, com que o seu autor dava conta de um certo cansaço e até indignação sobre o tempo social e político que então se vivia. Porém, não há na crónica uma referência objectiva sobre o facto ou factos que me terão motivado a escrevê-la, e nem eu os tenho agora presentes na memória. Por isso, a crónica resulta (como certamente já acontecera na altura em foi publicada) num texto de alguma ambiguidade, caso se lhe queira encontrar um sentido meramente referencial.   
Mas há sempre uma razão que justifica o acto da escrita, ainda que, por vezes, nenhuma razão aparente se lobrigue à superfície das realidades tangíveis e inequívocas e, pelo contrário, se alojem onde as razões são mais difíceis de encontrar, por isso, mais recônditas e, simultaneamente, mais profundas.
De qualquer modo, o que objectivamente motivara essa crónica, não foi certamente tão grave quanto a hecatombe (creio que não estou a exagerar, antes estivesse) que o Governo se prepara para instalar no País.  
Desde a restauração da democracia de Abril de 74, nenhuma decisão política representou tão grave ameaça aos direitos dos cidadãos e à vida livre e soberana de Portugal. Do que decorre da aplicação da medida, nada se iguala em prepotência e desrespeito.
Creio que nunca o despudor e a desfaçatez foram tão medonhos. Creio que nunca houve uma tão descarada e hedionda roubalheira.
Uma crónica que hoje se escreva sobre o tempo social e político que estamos a viver, terá que afirmar com toda a frontalidade que a Democracia se está a transformar num exercício déspota do poder político-económico que se instalou na Europa dos últimos trinta anos.   
E uma crónica que hoje se escreva diante das circunstâncias e dos factos à vista, terá que afirmar com toda a frontalidade que urge defender a Democracia, tal qual ela é em sua essência e deve ser na sua prática – um regime político que promova a riqueza colectiva e o bem-estar social, à luz de direitos e deveres iguais para todos os cidadãos – e não a desfiguração em que os patetas alegres dos políticos deixaram que ela se transformasse.


DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO

Creio que já aqui uma vez disse que são tantas as coisas que o difícil é optar… De facto: somos o alvo para onde convergem todos os projécteis. Às vezes, apetece sacudir a praga, como quem repele insectos numa noite abafada de verão. Cravam-se uns na sensibilidade cutânea; outros volteiam, zumbindo; outros aguardam o ataque a uma distância táctica, operando depois com maquiavélico oportunismo.
A culpa de tudo isto, para além de outras culpas, é o facto de sermos seres informados – uns mais, outros menos.
Tudo, ou quase tudo, nos é dito: e acabamos sempre por saber aquilo que por algum tempo nos escondem. É: mais tarde ou mais cedo, sabe-se. E quando se sabe algo tarde, mais se escancara a boca do espanto. Ou talvez não. É que nós já sabemos, nós já aprendemos que tudo é possível…
E o espanto, às vezes, não passa de um exercício de retórica sentimental – uma forma de exteriorizar, em nada diferente de silenciar. Ou talvez porque nos vem de longe o hábito de materializarmos as informações recebidas, ensaiando e emitindo reacções comunicativas, que, raras vezes, não passam de ruídos ou tiques, como dizer Bom-dia! Como passa?, sem que no enunciado haja qualquer intenção afecto-comunicativa, qualquer sentimento sentido.
Seres dotados de habilidades, algumas tidas como básicas, como são as de ouvir e falar; seres dotados de outras habilidades, como sejam ler e escrever; seres, como já aqui se pretendeu dizer, rodeados e banhados de linguagens e mensagens difundidas a preceito, mas também a torto e a direito, não sabemos, melhor, não podemos escapar à praga.    
Desde que o século da Comunicação, acoplado da sua filha, a menina Informática, nos pôs aqui como se estivéssemos em qualquer lado, dotando-nos assim de uma certa ubiquidade, o bombardeamento informativo não mais parou de ribombar.
Chegada a crónica a este ponto, poderá o leitor concluir que o alinhavador destas linhas se insurge, ao jeito de zelado pasteleiro, contra as moscas que a informação nos leva para casa. Conclusão mais clarividente e gritante será a do leitor considerar que este alfaiate compara a informação a pestilentos e incomodativos insectos. Mais trivialmente concluirá ainda o leitor que o tipo em questão é apologista do aforismo da avestruz a meter a cabeça na areia.
Mas este alfaiate, alinhavador, pasteleiro ou outro ofício que sirva a estilística em curso, com a autoridade que o exercício da pena lhe dá (que até é capaz de não ser nenhuma) categoricamente não confirma: simplesmente, desmente.
Em boa e rechonchuda verdade, o que este sujeito gostava é que uma carrada de coisas que nos são ditas não o fossem. E não o fossem apenas pela salutar razão de elas não existirem.    
Sabe agora o leitor do que falo. Com certeza: falo da estupidez que por aí anda a empestar o Mundo – moscas de agora e de sempre. Tantas que para lhes pôr termo seria necessário formar um colossal exército de zelosos pasteleiros armados de eficazes mata-moscas. Ou nem mesmo assim…
Das coisas que subentendidamente falo (dessas moscas, portanto), não vou dar relação detalhada – deixo isso para a imaginação do leitor. Mas o leitor sabe ao certo que moscas são.
Ora pense! Exacto, essa horrenda praga. E essa, também. Essa então, nem se fala. Claro, e essa também. E há mais, não é verdade? Basta pensar um pouco. Olhar ao redor. Ouvir os zumbidos…
Sabe, leitor, eu às vezes penso que nunca mais chegará o dia de uma pessoa andar simplesmente a colher flores, ou andar simplesmente a fazer outra coisa qualquer, por exemplo, ver tranquilamente televisão. Por falar em televisão, o leitor já pensou que bom seria se o mal do Mundo fosse as telenovelas brasileiras?
                       
(Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, JN, 29 de Janeiro de 1993)

domingo, 10 de outubro de 2010

O desassossego dos dias e das coisas

(Des)encantos da República
O saldo de 100 anos de republicanismo e de República não é positivo. Portugal é, na Europa, um país pobre, tolhido economicamente, técnica e tecnologicamente atrasado, tacanho, social e culturalmente, incipiente no exercício da cidadania. É claro que se pode continuar a procurar desculpas na ferida aberta pelo Estado Novo… Mas também se pode argumentar que se esperava mais e, sobretudo, melhor, do desempenho da denominada 2.ª República, nascida sob os auspícios da Revolução de Abril.
Cem anos depois, exorta-se ainda os ideais e o espírito republicano, ao mesmo tempo que estes, com mais ou menos genuinidade, se mesclam com os valores da Democracia. Há nas comemorações um tom de festa, um arrebatamento político e um jeito generalizado de folclore nacional. Mas prevalece a ideia de que a mudança, necessária e adequada para o país, continuará como que a afogar-se no caudal retórico dos discursos das intenções e das promessas.
(Fernando Hilário, resumo da comunicação “A República e os seus (des)encantos,  a apresentar no congresso de re publica, na UFP, a 3 de Novembro de 2010)   


O Livro do Desassossego e o desassossego do filme
Dir-se-ia que tanto desassossego da escrita de Bernardo Soares só poderia ficar enclausurado no interior mental do próprio livro ou gravitar por dentro da(s) cabeça(s) de quem o lia. Dir-se-ia, então, difícil ou até impossível tirar fosse o que fosse para fora do livro, que o livro parecia ser (e, todavia, não deixou de ser…) espaço sagrado da palavra imagem visual e acústica, conceito e sua referência, dir-se-ia, religiosa. Mas Botelho tirou o livro para fora da sua cabeça e dá-nos a ver e a ouvir como o leu, ou como quis pô-lo em filme. A partir desta violação, chamemos-lhe assim, outros filmes de outros realizadores ou outras manifestações de arte, envolvendo o Livro do Desassossego, serão possíveis… É a história do ovo de Colombo.  
Mas o belo filme de Botelho é, sobretudo, o exemplo de que o texto do semi-heterónimo de Pessoa é, pela dimensão poética e literária, intemporal, e sê-lo-á mais, certamente, do que o filme, este, ou, por hipótese, qualquer outro que a partir do livro de Bernardo Soares venha a realizar-se. Por isso, parece-nos clara a intenção de Botelho em esbater o mais possível as marcas da temporalidade ou da referencialidade que a representação cinematográfica sempre estabelece. Na impossibilidade de poder anular de todo essas marcas, o realizador mescla as imagens, esbate-as ou mesmo confunde-as no tempo e no lugar (possível) das ocorrências, procurando pelo bizarro e pelo anómalo sobrepor uma realidade hipotética, algo inverosímil, emaranhada, complexa e ambígua, tal como no Livro se apresenta, a uma realidade que fosse, por isto ou por aquilo, excessivamente taxada ou facilmente descodificada. Daí o recurso a um realismo fantástico, contrastivo da verdade e da fantasia, que ora exibe a crueza da miséria do mundo humano, ora veste de papel colorido as personagens que se elevam ao plano do transcendente ou do onírico. Só Lisboa exterior, cidade dialecticamente clara mas misteriosa, rectilínea mas labiríntica, “lar” do guarda-livros Bernardo Soares, aparece com a sua própria tez, branca e luminosa, e como se por um efeito de espelhos reflectisse sempre uma contemporaneidade, em que Botelho inscreve o filme e desse modo o quer ajustar à intemporalidade do livro.
O filme é um desempenho excelente dos vários actores, independentemente da especificidade do papel que lhes é atribuído e do maior ou menor caudal de representação, pelo que não será justo destacar este ou aquele, mas sim sublinhar o bom desempenho colectivo.  
Tal como o livro, o filme encontra um percurso que se sustenta e articula no discurso introspectivo de Bernardo Soares, estabelecendo uma circularidade que devolve um suposto fim ao início, o que prefigura a ideia do inacabado, do irresolúvel e do infinito, aspectos gratos do Modernismo e da poética de Pessoa. Neste transe, o indivíduo constrói-se e reconstrói-se em questionação mental para a criação mental de mundos, incluído o seu próprio mundo. Mas o significado da vida ou do trajecto desta é o retomar constante do sentido genésico, o devolver de pergunta em pergunta ao interior do sujeito que reflecte, como se verdadeiramente não houvesse respostas, e tudo, afinal, fosse um percurso vão, ou feito em vão. Por isso, o filme acaba onde praticamente havia começado: acaba no instante de se questionar a entidade autoral do Livro do Desassossego, momento, obviamente, em que faz todo o sentido, o Filme do Desassossego acabar. Percebe-se que Pessoa não queira assumir a autoria do seu heterónimo – por todas as razões da heteronímia –, já que para ele Bernardo Soares é um outro autor, distinto dele, que é o ortónimo. Mas a ficção acaba ali, naquele instante em que uma personagem “real” devolve ao escritor senhor Pessoa o mundo que certamente aquele livro guarda, mas mundo de criação literária onde tal personagem não entrará…
Tal como o livro, o filme é intensamente um exercício sensorial: de luz e som das imagens e das palavras. É um filme cuja câmara parece ser uma personagem a caminhar ao ritmo das pulsações das personagens que filma. Uma câmara que abre e fecha ângulos como se ela fosse uma personagem lúcida e doida capaz de perceber o papel, principal/secundário dos ângulos e, por tal sorte, assim os abrir e fechar. Uma câmara que se põe a brincar com o nítido e o turvo como se fosse uma personagem a focalizar a paisagem com um binóculo. Uma câmara que nos dá a luz do Livro do Desassossego e todas as cores, desde a luz plena de cor à luz ausência de cor, ou seja, o contraste das cores todas, à luz da vida e da morte, tal como está numa frase do livro, “A mesma luz que ilumina a face dos santos e os sapatos do homem comum”.

Fernando Hilário, 10 de Outubro de 2010
 (Obrigado ao João Botelho pelo excelente filme e por me fazer ir ao S. João, à Praça da Batalha, onde eu não ia, pasme-se, desde o século passado)

  

Em 29 de Julho de 1994, o JN publicava, na Escrita de Mel e Água, o texto:

É POR ELA QUE VAMOS
É uma palavra forte, de intensos sentimentos. Às vezes, frívola, também excessiva, em limite da razão, em ruptura, ou para lá dela. É uma espécie de doença, paludismo que ataca o coração, a mente e a alma. Creio que sobretudo ataca a alma, o coração prende e totalmente desprende a cabeça. De dor benigna, no âmago de nós sentida, toma-nos o todo interior.
Sentimo-la, pois que nos possui, nos comanda, nos aponta caminhos, viagens de que não sabemos nunca os percursos, os términos. Com ela vamos, mas é por ela que vamos, por sua vontade, indomável.
Quem lhe estimula o nascimento somos nós, que a vamos despertar em alguém ou em algo, mas raramente sabemos por que nasceu e tão possessivamente nos torna. Não temos disso clara consciência. E só nos resta então ir com ela, aliás, só nos agrada ir com ela.
É insensata. Às vezes, leviana. Louca. Despreconceituada. Revolucionária. Às vezes, libertina. Livre. Sobretudo livre, como as mais livres aves; por isso, tão bela.
De facto, voa ela em espaços nunca antes desvelados; em azuis onde ainda nenhum sonho se sonhou, em mares onde pela primeira vez passam atónitos barcos; em imaculados sítios onde nunca a mácula existiu, nenhuma mácula.
É ela o motor de explosão, vapor transoceânico, insuflada vela de caravela, navio de muito erguida proa, barco à deriva, comboio veloz, velocidade, foguetão, manhã prenhe de luz e ar, tão intensa que cega, astro em órbita à rebeldia das estabelecidas órbitas…
Ela é como ir entrando por um breu claro de noite, de olhos vendados, na utópica razão de tudo se julgando ir vendo, ou de tudo ir vendo.
De outras palavras é vizinha, de outros estados, de outros sentimentos… Mas nada se lhe assemelha em seu fulgor, que, enquanto é fogo, intensamente arde, que, enquanto devaneio, é puro devaneio.
Mas é fugaz. E quando se vai, como madeiro seco que se extingue, dela apenas ficam cinzas e uma memória ébria, algo longínqua, ainda que quente como vinho.
Podemos senti-la por muita coisa: por uma paisagem, por um quadro, por um livro, por um poema, por uma cidade, por um país, por um cão, por um gato, por uma flor…
Mas, de todas, a mais forte é a paixão que fala a linguagem sensual do amor. Do amor que em volúpia une os corpos em corpo de um único desejo, em lúbricas ânsias da matéria se fundir na sublimação do espírito. Essa aqui quero destacar: a paixão dos seres com eles mesmos encantados, enamorados. A paixão bela, porque livre e louca; a paixão dos amantes. Essa paixão que, durando a brevidade de um cigarro, arde colorida e nos levita.    
                                                                                                                                                                                                                                                       Fernando Hilário

sábado, 2 de outubro de 2010

Porque os países também morrem





Com as medidas anti-crise, apresentadas pelo PM, tudo está aí, claro, bem à vista: Portugal não tem riqueza, nem arte nem engenho para a criar; por isso, ficamos assim, cada vez mais pobres, como quem vive em agonia, miseráveis, a morrer.
 Em Março de 1993, não me lembro agora por que circunstâncias ou razões, eu publicava, na Escrita de Mel e Água do JN, “História do Futuro”, um conto que, apesar da distorção da realidade, naturalmente criada pela fantasia do non-sens e da caricatura, tem hoje, como certamente teve nesse tempo, uma dose, dir-se-ia, plausível, de verdade. Modéstia à parte, também poderemos encontrar na estória bizarra do conto, alguma provocação para a reflexão que, obviamente, a todos nós interessa fazer.



HISTÓRIA DO FUTURO

Quando o homem quis saber que país tinha sido este, o outro homem, a quem a pergunta fora feita, olhou o horizonte com os olhos que pareciam desinteressados, demorou a resposta, mas acabou por dizer:
 – Se quer que lhe diga, nem sei bem. Apenas lhe posso dizer que fomos europeus, europeus duma coisa chamada CE.
– Mas sabe como se chamava este país? – perguntou o interessado.
– Se me der tempo para um esforço de memória, se não tiver muita pressa, creio que chego lá.
– Fique à vontade, pense o tempo que precisar – disse o outro.
E o homem pensou, pensou, até que disse:
– Se não se chamava Espanha, chamava-se Portugal. Mas como me lembro mais do outro do que deste, é provável que se tenha chamado Portugal… Ou Bruxelas?!... Já não sei bem.
– E lembra-se de algum político importante, ao tempo?
– Sim, dos políticos lembro-me bastante bem, que os políticos não são fáceis de esquecer.
 – Diga-me, então, o nome dum político deste país – pediu o outro.
– Jacques Delors – disse o homem, sem grande esforço.
– Pelo nome não me parece ser daqui… Mas, enfim, este país poderá ter sido um país cosmopolita…      
 – Ah, sim, isso era! – atalhou vivamente o homem. Eram muitos os povos, as línguas e os interesses que por cá havia. Disso lembro-me eu bem.
Fez-se uma pausa, até que o homem que queria saber perguntou:
– Devia ser um país próspero, a avaliar pelas auto-estradas…
– Olhe que não! Isso foi apenas uma mania, uma espécie de tique, uma inconsequência.
– Como assim?! – perguntou o outro, visivelmente espantado.
– Bem, isto era uma espécie de terra dos outros. Os outros vinham passar férias para cá, viver, investir… Por isso, havia a mania de fazer boas estradas. Mas, para além disso, as ideias eram poucas.
 – Mas as estradas também serviam os de cá?! – perguntou o outro. E o outro respondeu:
– Não, não era bem assim. Mas, ao certo, também não lhe sei dizer como era.
– De qualquer modo – continuou o outro –, as vias serviriam para a comunicação dos produtos agrícolas, da indústria…
– Também não era bem assim. Nós não tínhamos grandes indústrias nem agricultura que se visse. Vinha quase tudo de fora. Nós pouco produzíamos. E o pouco passou a ser nada.      
 – Passou a ser nada? Como assim?!
 – Também não me lembro muito bem como é que isso aconteceu. Mas parece que pagavam aos agricultores para eles não produzirem. Os outros produziam por nós e punham cá os produtos. E quando isso acabou, já ninguém sabia fazer nada, tinham-lhe perdido o jeito.
– Mas comiam o quê? Perguntou o outro, curioso.
– Já lhe disse: comíamos as coisas dos outros.
– E na indústria?
– Na indústria, fazíamos aquilo que os outros nos deixavam fazer.
– Como?
– Por exemplo, fazíamos peças para automóveis, mas não fazíamos automóveis a andar. E quando os outros se foram embora, ficámos com as fábricas e as peças paradas.
– Então, este país não era bem um país! Era qualquer coisa como um comedouro e um amontoado de empregados! – conclui o outro.
– Mais ou menos isso – anuiu o outro.
 – E os serviços? Sim, os serviços como eram? Bons? Burocratas?... E a educação? E a saúde?...
– Olhe, disso não me lembro nada. Mas não devia ser grande coisa. Aliás, eu ainda guardo muitos papéis desse tempo. Creio que nunca nos demos bem com essas coisas dos serviços.
 – E o capital? O capital?
– Que capital?! O capital era dos outros. Quando foram embora, levaram-no com eles.
– E o senhor, de que é que vive, agora?
– Olhe, ao fim e ao cabo, do que sempre vivi, do que sempre vivemos…
– Não me diga que é da esperança ou da saudade? – perguntou o outro, julgando adivinhar.
– Mais ou menos.
– Porquê, mais ou menos? – quis ainda o outro saber.
– E o outro homem olhou outra vez o horizonte. Era manhã. O nevoeiro aconchegava aquele mundo. E disse:
– Dali há-de vir o D. Sebastião, para nos salvar.
– Quem é esse? – ignorante e chato, quis o outro saber.
– Isso não me pergunte, que eu também não sei. Só sei que ele há-de vir, até porque, se ele não vier, eu não sei o que fazer com a minha vida.