domingo, 10 de outubro de 2010

O desassossego dos dias e das coisas

(Des)encantos da República
O saldo de 100 anos de republicanismo e de República não é positivo. Portugal é, na Europa, um país pobre, tolhido economicamente, técnica e tecnologicamente atrasado, tacanho, social e culturalmente, incipiente no exercício da cidadania. É claro que se pode continuar a procurar desculpas na ferida aberta pelo Estado Novo… Mas também se pode argumentar que se esperava mais e, sobretudo, melhor, do desempenho da denominada 2.ª República, nascida sob os auspícios da Revolução de Abril.
Cem anos depois, exorta-se ainda os ideais e o espírito republicano, ao mesmo tempo que estes, com mais ou menos genuinidade, se mesclam com os valores da Democracia. Há nas comemorações um tom de festa, um arrebatamento político e um jeito generalizado de folclore nacional. Mas prevalece a ideia de que a mudança, necessária e adequada para o país, continuará como que a afogar-se no caudal retórico dos discursos das intenções e das promessas.
(Fernando Hilário, resumo da comunicação “A República e os seus (des)encantos,  a apresentar no congresso de re publica, na UFP, a 3 de Novembro de 2010)   


O Livro do Desassossego e o desassossego do filme
Dir-se-ia que tanto desassossego da escrita de Bernardo Soares só poderia ficar enclausurado no interior mental do próprio livro ou gravitar por dentro da(s) cabeça(s) de quem o lia. Dir-se-ia, então, difícil ou até impossível tirar fosse o que fosse para fora do livro, que o livro parecia ser (e, todavia, não deixou de ser…) espaço sagrado da palavra imagem visual e acústica, conceito e sua referência, dir-se-ia, religiosa. Mas Botelho tirou o livro para fora da sua cabeça e dá-nos a ver e a ouvir como o leu, ou como quis pô-lo em filme. A partir desta violação, chamemos-lhe assim, outros filmes de outros realizadores ou outras manifestações de arte, envolvendo o Livro do Desassossego, serão possíveis… É a história do ovo de Colombo.  
Mas o belo filme de Botelho é, sobretudo, o exemplo de que o texto do semi-heterónimo de Pessoa é, pela dimensão poética e literária, intemporal, e sê-lo-á mais, certamente, do que o filme, este, ou, por hipótese, qualquer outro que a partir do livro de Bernardo Soares venha a realizar-se. Por isso, parece-nos clara a intenção de Botelho em esbater o mais possível as marcas da temporalidade ou da referencialidade que a representação cinematográfica sempre estabelece. Na impossibilidade de poder anular de todo essas marcas, o realizador mescla as imagens, esbate-as ou mesmo confunde-as no tempo e no lugar (possível) das ocorrências, procurando pelo bizarro e pelo anómalo sobrepor uma realidade hipotética, algo inverosímil, emaranhada, complexa e ambígua, tal como no Livro se apresenta, a uma realidade que fosse, por isto ou por aquilo, excessivamente taxada ou facilmente descodificada. Daí o recurso a um realismo fantástico, contrastivo da verdade e da fantasia, que ora exibe a crueza da miséria do mundo humano, ora veste de papel colorido as personagens que se elevam ao plano do transcendente ou do onírico. Só Lisboa exterior, cidade dialecticamente clara mas misteriosa, rectilínea mas labiríntica, “lar” do guarda-livros Bernardo Soares, aparece com a sua própria tez, branca e luminosa, e como se por um efeito de espelhos reflectisse sempre uma contemporaneidade, em que Botelho inscreve o filme e desse modo o quer ajustar à intemporalidade do livro.
O filme é um desempenho excelente dos vários actores, independentemente da especificidade do papel que lhes é atribuído e do maior ou menor caudal de representação, pelo que não será justo destacar este ou aquele, mas sim sublinhar o bom desempenho colectivo.  
Tal como o livro, o filme encontra um percurso que se sustenta e articula no discurso introspectivo de Bernardo Soares, estabelecendo uma circularidade que devolve um suposto fim ao início, o que prefigura a ideia do inacabado, do irresolúvel e do infinito, aspectos gratos do Modernismo e da poética de Pessoa. Neste transe, o indivíduo constrói-se e reconstrói-se em questionação mental para a criação mental de mundos, incluído o seu próprio mundo. Mas o significado da vida ou do trajecto desta é o retomar constante do sentido genésico, o devolver de pergunta em pergunta ao interior do sujeito que reflecte, como se verdadeiramente não houvesse respostas, e tudo, afinal, fosse um percurso vão, ou feito em vão. Por isso, o filme acaba onde praticamente havia começado: acaba no instante de se questionar a entidade autoral do Livro do Desassossego, momento, obviamente, em que faz todo o sentido, o Filme do Desassossego acabar. Percebe-se que Pessoa não queira assumir a autoria do seu heterónimo – por todas as razões da heteronímia –, já que para ele Bernardo Soares é um outro autor, distinto dele, que é o ortónimo. Mas a ficção acaba ali, naquele instante em que uma personagem “real” devolve ao escritor senhor Pessoa o mundo que certamente aquele livro guarda, mas mundo de criação literária onde tal personagem não entrará…
Tal como o livro, o filme é intensamente um exercício sensorial: de luz e som das imagens e das palavras. É um filme cuja câmara parece ser uma personagem a caminhar ao ritmo das pulsações das personagens que filma. Uma câmara que abre e fecha ângulos como se ela fosse uma personagem lúcida e doida capaz de perceber o papel, principal/secundário dos ângulos e, por tal sorte, assim os abrir e fechar. Uma câmara que se põe a brincar com o nítido e o turvo como se fosse uma personagem a focalizar a paisagem com um binóculo. Uma câmara que nos dá a luz do Livro do Desassossego e todas as cores, desde a luz plena de cor à luz ausência de cor, ou seja, o contraste das cores todas, à luz da vida e da morte, tal como está numa frase do livro, “A mesma luz que ilumina a face dos santos e os sapatos do homem comum”.

Fernando Hilário, 10 de Outubro de 2010
 (Obrigado ao João Botelho pelo excelente filme e por me fazer ir ao S. João, à Praça da Batalha, onde eu não ia, pasme-se, desde o século passado)

  

Em 29 de Julho de 1994, o JN publicava, na Escrita de Mel e Água, o texto:

É POR ELA QUE VAMOS
É uma palavra forte, de intensos sentimentos. Às vezes, frívola, também excessiva, em limite da razão, em ruptura, ou para lá dela. É uma espécie de doença, paludismo que ataca o coração, a mente e a alma. Creio que sobretudo ataca a alma, o coração prende e totalmente desprende a cabeça. De dor benigna, no âmago de nós sentida, toma-nos o todo interior.
Sentimo-la, pois que nos possui, nos comanda, nos aponta caminhos, viagens de que não sabemos nunca os percursos, os términos. Com ela vamos, mas é por ela que vamos, por sua vontade, indomável.
Quem lhe estimula o nascimento somos nós, que a vamos despertar em alguém ou em algo, mas raramente sabemos por que nasceu e tão possessivamente nos torna. Não temos disso clara consciência. E só nos resta então ir com ela, aliás, só nos agrada ir com ela.
É insensata. Às vezes, leviana. Louca. Despreconceituada. Revolucionária. Às vezes, libertina. Livre. Sobretudo livre, como as mais livres aves; por isso, tão bela.
De facto, voa ela em espaços nunca antes desvelados; em azuis onde ainda nenhum sonho se sonhou, em mares onde pela primeira vez passam atónitos barcos; em imaculados sítios onde nunca a mácula existiu, nenhuma mácula.
É ela o motor de explosão, vapor transoceânico, insuflada vela de caravela, navio de muito erguida proa, barco à deriva, comboio veloz, velocidade, foguetão, manhã prenhe de luz e ar, tão intensa que cega, astro em órbita à rebeldia das estabelecidas órbitas…
Ela é como ir entrando por um breu claro de noite, de olhos vendados, na utópica razão de tudo se julgando ir vendo, ou de tudo ir vendo.
De outras palavras é vizinha, de outros estados, de outros sentimentos… Mas nada se lhe assemelha em seu fulgor, que, enquanto é fogo, intensamente arde, que, enquanto devaneio, é puro devaneio.
Mas é fugaz. E quando se vai, como madeiro seco que se extingue, dela apenas ficam cinzas e uma memória ébria, algo longínqua, ainda que quente como vinho.
Podemos senti-la por muita coisa: por uma paisagem, por um quadro, por um livro, por um poema, por uma cidade, por um país, por um cão, por um gato, por uma flor…
Mas, de todas, a mais forte é a paixão que fala a linguagem sensual do amor. Do amor que em volúpia une os corpos em corpo de um único desejo, em lúbricas ânsias da matéria se fundir na sublimação do espírito. Essa aqui quero destacar: a paixão dos seres com eles mesmos encantados, enamorados. A paixão bela, porque livre e louca; a paixão dos amantes. Essa paixão que, durando a brevidade de um cigarro, arde colorida e nos levita.    
                                                                                                                                                                                                                                                       Fernando Hilário

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