domingo, 24 de outubro de 2010

IDEIAS GENIAIS

Se avaliarmos o exercício da política e os factos políticos dos últimos 30 anos, é fácil perceber que os políticos tornaram-se uma classe de fiteiros a produzir fitas e mais fitas. E eu abomino fiteiros. E abomino as fitas que fazem. Ultimamente, os fiteiros e as fitas têm ultrapassado as marcas do tolerável. A fita que os vários fiteiros estão a protagonizar é das mais ridículas da nossa História recente. É claro que o país já está farto de tantas fitas e de tantos fiteiros. Mas, entretidos com suas fitas, os políticos, porque são fiteiros, ainda não perceberam isso...
Em 4 de Outubro de 1990, no Jornal de Notícias, do seu ano 103/, no n.º125, publicava-se o texto “A ideia”, na rubrica Escrita de Mel e Água.
Não sei dizer a razão por que escrevi esta crónica com tal personagem e semelhante enredo. Relida assim à distância, parece-me coisa rebuscada para tortura de leitor – mas isso cada leitor o dirá. Destaco, porém, a ideia genial da nota em rodapé.

A IDEIA
O ministro acordou com uma ideia. Tomou o pequeno-almoço com a ideia. Uma ideia genial. Tão genial que até tinha dificuldades em digeri-la. Tão madrugadora a sua cabecinha que até o espantava. Mas o ministro já estava bem desperto: fizera as necessidades, tomara banho e exalava colónia e “after shave”. Já comera os flocos de cereais, o “bacon” e os ovos, os “croissants” com manteiga, as compotas com ricas e finas fatias de pão, uma ou outra bolacha de água e sal, e já saboreara um café moído à mão. Rematava agora com um delicioso cigarro.
Até a boa serviçal estranhou o seu ministro, habituada a vê-lo entornar o sumo de laranja pela gravata abaixo, a deixar que os flocos lhe fossem parar ao goto, a salpicar o colo de compota, a besuntar-se de manteiga e “bacon”, a dizer mal dos ovos mexidos e do gosto do café, a chamar nomes feios aos jornalistas. Mas, nessa manhã, o sr. ministro era um homem diferente: um homem cúmplice entre o compenetrado e o desenvolto.
E a ideia era tão genial! Achava-a tão genial! Tão genial que até receava que não viesse a ser digerida pelos seus colegas ministros, incluindo o primeiro-ministro. Talvez não alcançassem o seu alcance. Talvez não dimensionassem cabalmente a sua dimensão. Talvez não assimilassem a essência intrínseca da sua substância. Talvez não aquilatassem da vital importância da ideia para a economia, para a saúde, para o comércio, para a defesa, para a cultura, para a educação, para o incremento, para o desenvolvimento, para o passado, para o futuro e para o presente do país. Talvez não aquilatassem das frutuosas implicações que o seu implemento traria ao nível da NATO, da OUA, da CEE, UNICEF, FAO, OPEP, ONU, OCDE, ANC, FMI… da Europa e até do Mundo.
É, não iriam percebê-lo. E o pior é que o achariam mal da tola. Por causa da ideia genial, perderia crédito. E talvez até viesse a perder a pasta. Talvez vissem nele um vendido à oposição. E não terminaria o mandato.
Não há hipóteses, comentava de si para si. Não me vão acreditar, comentava ainda de si para si. Dirão que estou passado, comentava. É de mais!, comentava, de si para si.
Mas, de repente, a luz, coada pela vidraça dos vidros duplos e fumados da janela, cintilou e luziu esclarecedora no serviço da finíssima louça do velhíssimo e elegantíssimo serviço de Gilman & Cta de Alcobaça, de Sacavém, de Portugal…  E  se eu expusesse a genial ideia ao chefe de gabinete e aos secretários?! perguntou ele, a si mesmo. Que disparate! – conclui ele, para si mesmo. Então eu agora ia pedir pareceres, dar satisfações aos meus subalternos?! Não. E afastou essa ideia. Mas… espera! – disse ele. E a serviçal esperou. Diga, sr. ministro – disse a serviçal. Digo o quê?! – perguntou o ministro. Diga por que espero – disse ela. Não digo, que isto para ti é “top secret”! E a serviçal desandou, com a manteigueira de cristal na mão.  
E o ministro continuou a pensar. A não ser que eu coloque a ideia ao ministro da… É isso! É isso mesmo! Ele é o único capaz de atingir a amplitude da minha ideia. Já em Coimbra o tipo era uma barra. Sem dúvida! É a ele que eu vou expor a minha genial ideia. Assim, explicada por ele, o primeiro-ministro topa-a à primeira.
E o ministro já se imaginava na assembleia, ora, numa data de assembleias, a falar da sua genial ideia. Via-se, S. Excia, em hemiciclos pejados de deputados a roerem-se de inveja – uma deputada mais que tal, toda embevecida. Via-se estampado nos jornais. De cá e de além fronteiras. A abrir os telejornais. Via-se em todas as cadeias de televisão. Via satélite, por cabo e por tudo. Do Iraque à América, passando pela Grã-Bretanha, pela Rússia e afins; o mundo inteirinho a seus pés. Um nome de pedra e cal na história. Em letras de oiro. Garrafais. Da lei da morte libertado. No “guiness bock”. Em estátua. No Chiado, tomando café à mesa do Pessoa, num tu-cá-tu-lá, pleno de propósito. Embalado nos braços do Infante. Num fraterno abraço ao Marquês de Pombal. Em Guimarães, com D. Afonso Henriques, empunhando com ele a espada.      
Mas reflectiu e disse que não. Não! Não vou meter o tipo nisto. Se o primeiro-ministro viesse a mensurar o peso da minha genial ideia, nunca acreditaria que ideia tão genial fosse minha. E com a capacidade de argumentação que o tipo tem, bem visto como está (toda a gente sabe que o tipo é o menino bonito do primeiro, há até quem diga que devia ser ele o primeiro-ministro…), ora, aproveitava-se logo: palmava-me a ideia genial e eu ficava sem a minha genial ideia.
E apagou o cigarro. Pegou na pasta. E quando a caminho do ministério, já ia com outras ideias.
NOTA: Esta história é pura ficção. Qualquer tentativa para identificação das personagens é pura e estúpida especulação, incluindo a boa serviçal ou mesmo as ricas e finas fatias de pão.     

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