Num determinado tempo
da minha meninice, julguei que o Carnaval fosse o dia dos sustos. Os mascarados
existiam para nos assustar. Por isso é que iam no encalço das pessoas e, em
piruetas desconformes e medonhas, lançavam-lhes o feio das suas figuras. Depois,
explodiam em terríveis gargalhadas, felizes pelo efeito conseguido.
Tinham essas exibições
qualquer coisa de tétrico, de macabro, de mortuário. E eu tinha-lhes muito
medo.
Na raiz desta ideia
estavam certamente as primeiras máscaras que eu vi e cuja impressão perpetuou algum
tempo na retina. Eram feias carantonhas, máscaras de um grotesco sem graça,
negras, brancas, vermelhas, resultado de uma plástica que conciliava o engenho
local com os materiais possíveis. No fundo, eram criações na linha dos
espantalhos. Mas espantalhos vivos, caveiras movíveis, talhadas na casca
esbranquiçada de uma abóbora, duendes, ogres, bruxas, fadas más, piratas de
olho de vidro e de perna de pau, mafarricos, fantasmas feitos de pano de lençol
e outras demoníacas figuras pintadas a carvão e rouge.
Só mais tarde, a
indústria trouxe as máscaras de papelão, de cartão, de plástico, com cores
brilhantes e fixas, resistentes à água atrevida das seringas, e tão reais algumas
que pareciam a sério.
Começava, assim, a
mascarada em pronto a servir, a possibilidade de cada um escolher a máscara a seu
gosto, sem apelo pessoal a grandes engenhos e artes.
Nesta altura, eu já era
rapaz de escola primária. E para entrar na brincadeira, economizava nos
pirolitos, nos chupa-chupas, na fava-rica e outras gulodices. Ia então à venda
e comprava uns tostões de estalinhos, bombinhas, bichas-de-rabiar, serpentinas
para os automóveis levarem e, sobretudo, uma bisnaga ou seringa. A melhor que
tive foi uma tipo pistola James Bond. Infalível, de esguicho veloz, longo e
certeiro.
Depois veio o tempo de
olhar para a sombra. E o Carnaval, como qualquer outra festa profana, era
sempre aguardado com ansiedade. Com ele vinham os bailes; vinham outros
contactos e aberturas que ao tempo tinham tanto de proibido como de desejado. E
as máscaras, o disfarce, davam jeito… Quanto mais não fosse, davam alento aos
tímidos e mais “lata” aos que já a tinham.
Era, enfim, tempo de
certos escapes e avanços, como ainda o é hoje, e o é ainda de alguma permissividade
e de certos exageros.
E depois desse tempo, o
Carnaval foi-se estreitando ao convívio dos amigos, com uns copos, um chouriço
em álcool, caldo-verde e alguma música.
Mas este Carnaval de
1991 trouxe-me memórias bem longínquas. Memórias desse tempo da minha meninice.
E pensei mascarar-me. Não para ir a um baile de máscaras ou tomar parte em um
desfile de rua. Nada disso. Pensei mascarar-me para ir meter medo a certos
homens…
Mas por pensar que não
há nenhuma máscara capaz de lhes meter medo, desisti.
Fernando Hilário
(Crónica publicada na rubrica “Escrita de Mel
e Água” do Jornal de Notícias, a 14 de
fevereiro de 1991.)