segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

1991-2013 ou 22 anos depois…

                                                                       O dia dos sustos

Num determinado tempo da minha meninice, julguei que o Carnaval fosse o dia dos sustos. Os mascarados existiam para nos assustar. Por isso é que iam no encalço das pessoas e, em piruetas desconformes e medonhas, lançavam-lhes o feio das suas figuras. Depois, explodiam em terríveis gargalhadas, felizes pelo efeito conseguido.
Tinham essas exibições qualquer coisa de tétrico, de macabro, de mortuário. E eu tinha-lhes muito medo.
Na raiz desta ideia estavam certamente as primeiras máscaras que eu vi e cuja impressão perpetuou algum tempo na retina. Eram feias carantonhas, máscaras de um grotesco sem graça, negras, brancas, vermelhas, resultado de uma plástica que conciliava o engenho local com os materiais possíveis. No fundo, eram criações na linha dos espantalhos. Mas espantalhos vivos, caveiras movíveis, talhadas na casca esbranquiçada de uma abóbora, duendes, ogres, bruxas, fadas más, piratas de olho de vidro e de perna de pau, mafarricos, fantasmas feitos de pano de lençol e outras demoníacas figuras pintadas a carvão e rouge.
Só mais tarde, a indústria trouxe as máscaras de papelão, de cartão, de plástico, com cores brilhantes e fixas, resistentes à água atrevida das seringas, e tão reais algumas que pareciam a sério.
Começava, assim, a mascarada em pronto a servir, a possibilidade de cada um escolher a máscara a seu gosto, sem apelo pessoal a grandes engenhos e artes.
Nesta altura, eu já era rapaz de escola primária. E para entrar na brincadeira, economizava nos pirolitos, nos chupa-chupas, na fava-rica e outras gulodices. Ia então à venda e comprava uns tostões de estalinhos, bombinhas, bichas-de-rabiar, serpentinas para os automóveis levarem e, sobretudo, uma bisnaga ou seringa. A melhor que tive foi uma tipo pistola James Bond. Infalível, de esguicho veloz, longo e certeiro.
Depois veio o tempo de olhar para a sombra. E o Carnaval, como qualquer outra festa profana, era sempre aguardado com ansiedade. Com ele vinham os bailes; vinham outros contactos e aberturas que ao tempo tinham tanto de proibido como de desejado. E as máscaras, o disfarce, davam jeito… Quanto mais não fosse, davam alento aos tímidos e mais “lata” aos que já a tinham.
Era, enfim, tempo de certos escapes e avanços, como ainda o é hoje, e o é ainda de alguma permissividade e de certos exageros.
E depois desse tempo, o Carnaval foi-se estreitando ao convívio dos amigos, com uns copos, um chouriço em álcool, caldo-verde e alguma música.
Mas este Carnaval de 1991 trouxe-me memórias bem longínquas. Memórias desse tempo da minha meninice. E pensei mascarar-me. Não para ir a um baile de máscaras ou tomar parte em um desfile de rua. Nada disso. Pensei mascarar-me para ir meter medo a certos homens…
Mas por pensar que não há nenhuma máscara capaz de lhes meter medo, desisti.
 
 
                                                                                                                      Fernando Hilário
(Crónica publicada na rubrica “Escrita de Mel e Água” do Jornal de Notícias,  a 14 de fevereiro de 1991.)