sábado, 31 de dezembro de 2011

Um poema para 2012

Temos as mãos e temos os olhos,
a pele e o sorriso, destaque-se o sorriso.
Mas temos as manhãs para celebrar, sobretudo
para celebrar. E as noites
para o voo azul das aves,
tão simples como isso.
Também temos, entre um tempo e outro,
desenhadas as tardes. E as estações, todas
as estações, que cada estação a outra estação
sucede espanto natural.
E temos os rios, os rios que são lágrimas
da alegria jorrada das fontes,
quaisquer que sejam. E os mares
e os oceanos, imensos campos de flores de sal
onde todas as coisas vêm sem cessar
ao seu encontro. E temos o vento, a palavra,
doce e dura, mãe dos idiomas. E a nós
temo-nos e aos outros todos os que habitam,
animais longe ou de nós próximos,
tão simples como isso.
Temos as montanhas e os vales, os prados,
as colinas, os cumes e sopés, vertentes e ladeiras,
astros; a aldeia e as cidades, a casa, o quarto,
a lareira, a mesa, a aliança, as alianças todas
de todas as colheitas, de todas as conquistas, da paz.
Tão simples como isso.
Da semente ao fruto, temos a viagem, da terra
à boca, da terra ao corpo, dos pais aos filhos,
da terra à terra, tão simples como isso.
Temos pontes que seguras são o caminho
da música, e estradas outras são rendas
de bilros, telas, tintas, a pintura, ou o que é
das mãos o trabalho das coisas em coisas transformadas.
Tão simples como isso. Temos tudo e o que não
temos do gesto depende, tão simples como isso.

HILÁRIO, Fernando – Tempo Instante. Lisboa: Instituto Piaget, 2033, p. 72. ISBN: 972-771-682-2

BOM ANO!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ACABAR COM A DÍVIDA E SAIR DA CRISE

Brincando com as palavras e os significados delas, eu diria que uma dívida, quando é verdadeiramente soberana, não se paga. E não se paga, precisamente por ser tratar de uma dívida soberana.

Ou é soberana, ou não é!

Acontece, porém, que em Portugal e na Europa já nada é soberano, nem os países, nem as dívidas, nem os políticos, nem os sindicalistas, nem as pessoas...

Por cá, enquanto o Governo anda a esquadrinhar modos e maneiras para conseguirmos pagar a dívida soberana, a soberania do País vai indo por água abaixo.

Com ela, isto é, com a soberania a ir por água abaixo, vai o país e vão os portugueses – vão os anéis e os dedos…

É que quanto mais pagamos a dívida, maior é a crise; ao ponto da falência do país, das instituições, dos serviços e das pessoas, no presente, ser já uma realidade; ao ponto de não se vislumbrar como vai ser, no futuro, o futuro, mesmo que, entretanto, se consiga pagar a dívida do presente, no presente.

(…)

Na sua demanda obsessiva em desencantar os modos e as maneiras para pagarmos a dívida, o Governo, naquilo que considero um deslumbre só ao alcance de alguns (dos obviamente mais dotados), sugere a emigração. De imediato, a começar pelos professores e, depois, talvez por decreto exarado em brilhante Conselho de Ministros, extensiva a outros funcionários públicos. Por exemplo, do Ministério da Economia e das Finanças, para, quiçá, irem trabalhar para a Alemanha ou para a França… E que mobilidade seria! Que desempenho! Conseguem ver os nossos compatriotas ao balcão de uma repartição francesa ou alemã, a aviar cidadãos, em bicha, com papéis de burocracias locais na mão? Conseguem?

Não conseguem?!

(…)

É verdade que este Governo tem pensado muito (obsessivamente, desmesuradamente, diria até estupidamente…) sobre como pagar a dívida para sairmos da crise. Mas o Governo não pensa ou não sabe pensar como havemos de deixar de pagar a dívida para podermos sair da crise. Diria que esta dialética, mais do que um mero trocadilho, se traduz, em todo o caso, na frase popularucha “É muito areia para a minha camioneta”, frase que o Governo, obviamente, parafraseia e subscreve.

O Governo (não é inédito o que vou dizer) é um aluno obcecado em agradar aos mestres e mesmo àqueles que exercem apenas a função de prefeitos; bajulador, beija-mão, etc. Aluno que não levanta a cabeça, que a mantém baixa, que a mantém cabisbaixa, que mantém o olhar a olhar por baixo; daí que este aluno não é ave que aprenda ou que saiba voar sozinha, a voar alto, a voar soberanamente.

Por isso (também não é totalmente inédito o que vou dizer), eu proponho a emigração compulsiva, espécie de deportação, de degredo para este Governo. E sugiro, por exemplo, que o Ministro José Relvas vá recitar versos do Guerra Junqueiro e do Dantas para o Metro de Paris. Acho que ia sair-se bem. E sugiro, por exemplo, que o Ministro Vítor Gaspar, que se exprime muito claramente e muito pausadamente, vá ensinar a tabuada para uma escola básica do interior da Alemanha, de preferência da antiga Alemanha de Leste. E sugiro, por exemplo, que o Primeiro Ministro Passos Coelho vá para África, por hipótese meramente académica, para a Guiné-Bissau, para cumprir a sua deriva de ser ainda mais africano. (Podia sugerir mais, mas fico-me por aqui.)

Talvez assim pudéssemos acabar com a dívida e a crise soberanas.

Vilar do Monte, 30 de dezembro de 2011

sábado, 10 de dezembro de 2011

QUALQUER COISA E ALQUIMIA

A crónica que adiante se publica, data de uma sexta-feira do dia 5 de novembro do ano de 1993.

Hoje, os políticos europeus não sabem sair da crise em que se meteram, em que nos meteram e em que meteram a Europa. Esta incapacidade prova-se pelo choro da ministra italiana. Parece que a resposa é essa: chorar, e chorar sobre leite derramado.

Na altura da escrita da dita crónica. o escriva já suspeitava que a coisa pudesse correr mal. Por isso, fazia figas para que tudo corresse bem. Há um medo visível, há essa suspeição, essa premonição, que parece emegir do texto da crónica e ficar a pairar à superfície em tiradas de cómico, de sem sentido, de ironia (...)

Às vezes, mais valia, a quem escreve, nunca ter razão.
Deixo-vos com a crónica e com a verdade do tempo todo que vem agarrado a ela.

QUALQUER COISA E ALQUIMIA

No princípio era a CEE. Depois perdeu um E. E gora é a União. É dela que vamos falar.

A união faz a força. Uma europa unida nunca mais será vencida. O europeu, pela União, está unido? Está, sim senhor.

Com a União acabaram as desuniões. Por exemplo, todo o alemão unido nunca mais será convencido...

Na União há os fortes, os menos fortes e os outros. Os alemães são os fortes. Os portugueses são os outros. No meio ficam outros, que são muitos. Mas, unidos, são todos fortes -- basta acreditar. S. Tomé não podia ser da União. Dos céticos não reza a história... da União.

Há portugueses que são pela União. Outros nem por isso. Há ainda os que só são adeptos de clubes de futebol, como, por exemplo, do União da Madeira. Lucas Pires é o porta-estandarte dos unidos, mesmo que lhe decepem as mãos.

Há muitas uniões: sindical, desportiva, columbófila, cooperativa, pecuária, clubística, pirotécnica... e de países.

A união de países é aquela união onde há mais uniões; e porque cada país da União tem muitas uniões, e como são muitos os países a ter uniões, a União tem muitas uniões. Deste modo, a União candidata-se, desde já, ao Guinness Book. E parabéns à União.

Já houve a União Soviética (que deu no que deu); há os Estados Unidos (que, qualquer dia, vamos ver o que vai dar) e outras uniões. Agora há esta: a União, que, como ainda é muito bebé, é ainda uma união, ou seja, uma união que ainda não pensa.

Com a União, nada mais é como foi, nada mais será como dantes. Com a União tudo muda: a Europa unida pula e avança; e o resto do Mundo a julga constelação colorida nas mãos de uma bonança. E cantemos todos a União. Os que quiserem, é claro, que à coisa das uniões ninguém é obrigado

Na União, como em qualquer união, são todos por um, um por todos. E nesta união, o que os une a todos e a cada um é o ECU.

A Europa unida pelo ECU será mantida! -- é o "slogan" possível.

O ECU é de todos, mas os alemães mandam mais no ECU que todos os outros unidos do e pelo ECU.

Viva o ECU! Mas viva, enquanto for ECU unido.

O pior é se um dia o ECU dá o berro, desune-se e lá vai a União do ECU.

Depois, será outro o "slogan": a Europa unida sem o ECU está... desunida!

É verdade: o princípio de qualquer desunião é a união. [...]

Quando entrarmos na desunião, toda a gente vai atribuir a culpa à União. Eu sei que já estão a pensar na Alemanha. Lá no fundo, eles são uns "desunieiros" que só gostam de uniões à moda deles. Aliás, como nós, com o cozido.

Entretanto, todo o bom português que se preze deve aproveitar ao máximo os benefícios da União. Até nem era má ideia que, no ano 2000, as cabras também tivessem as suas auto-estradas, no mínimo, vias rápidas, e com aquelas casas de pasto, todas muito à europeia, para que pudessem abastecer-se com qualidade e nível de vida.

Pela parte que me toca, vou fazer os possíveis para que o presidente de freguesia da minha aldeia seja um grego. E não me perguntem porquê.

Outra contrapartida que eu quero da União é escrever coisas destas no "Figaro" ou no "Financial Times".

Creio que não é pedir muito.

Viva a União!

(Fernando Hilário, "Última Página", Jornal de Notícias, 5-11-1993)