O CONTO DO HOMEM QUE FOI PARAR AO INFERNO (Inédito)
Um homem foi parar ao inferno. O porteiro encaminhou-o para a Secção de Registos; registou-se, depois uns cicerones da área das relações públicas levaram-no a visitar o inferno, a conhecer a vida, como era, o que podia fazer.
O homem estava admirado, tão admirado que até perguntou se ali em vez do inferno não era o céu. Quiseram saber por que se admirava. Porque é tudo tão agradável! tão simpático! até parece o céu! Mas o senhor conhece o céu? perguntaram-lhe. Não, não conheço! A que se deve, então, a dúvida? O homem calou-se; enganaram-no a vida toda, sempre lhe disseram que o inferno era o fogo ardente, onde sofreria, e, afinal, parecia a vida no inferno um sonho! Saiba que, disse um dos cicerones, a nossa preocupação é que todos se sintam bem no inferno! Mas diz-se tão mal do inferno! disse o homem. Quem diz? perguntou outro cicerone. Toda a gente. Quem? A gente da Terra. Ah, bom, isso sim, essa gente diz mal, mas como pode constatar não corresponde à verdade. Pelos vistos, não, concluiu o homem, e continuou: Mas porque será que dizem mal, se o inferno não é nada do que dizem?! É marketing, disse outro cicerone, o céu não consegue oferecer as nossas condições, por isso, dizem mal; em contrapartida, nunca ninguém nos ouviu dizer mal do céu; a nossa política é simples: deixamos que os outros falem por nós...
Iam andando, os cicerones mostravam o inferno, falavam dele e da vida. O homem estava admirado. Parecia que nada faltava, tudo tinha um ar pós-moderno, nada minimalista, nem sequer espartano, mas sim de shopping luxuoso; as pessoas que se cruzavam com eles nos corredores refulgiam alegria, boa disposição, contentamento; os rostos reluziam, os olhares faiscavam… Na zona da restauração, pararam, coisa digna de se ver, um restaurante estava a abarrotar de gente; tinha paredes e telhados de vidro; era o Zé do Pipo; espiou a ementa exposta à entrada em retábulo debruado com uma parreira em baixo-relevo:
petiscos
bucho chispe orelha de porco fígado de cebolada coração frito torresmos bacalhau frito pataniscas de bacalhau pastéis de bacalhau caracóis à lisbonense chouriço assado na brasa favas estufadas com chouriço, os cicerones liam com ele, peixinhos da horta enguias de barrica filetes de sardinha sardinha frita sardinha de escabeche sardinha assada na brasa caparau frito pratinhos de moelas rissóis de vitela e de camarão chamuças croquetes temos broa de Avintes (…)
Passou ao peixe:
peixe
cabeça de pescada cozida com bom colarinho pescada cozida com batata e feijão verde pescada frita com batata frita e arroz seco ou malandro filetes de tamboril com arroz do mesmo filetes de polvo com arroz do mesmo polvo à lagareiro sável frito há mílharas! Os cicerones seguiam-no na leitura, sável de escabeche chicharro assado na brasa com molho verde espetada de lulas com gambas bacalhau cozido com todos bacalhau cozido com grão meia desfeita com grão-de-bico empadão de bacalhau bacalhau à Zé do Pipo bacalhau assado no forno com grelos bacalhau com natas bacalhau com broa bacalhau de segredo bacalhau à espanhola bacalhau à Gomes de Sá lombinhos de bacalhau frito com arroz malandro de feijão vermelho ou de grelos arroz de bacalhau com ovos escalfados bacalhau à demo bacalhau nunca visto cavala cozida peixe-espada frito fanecas fritas raia cozida cherne à Durão só por encomenda robalo ao sal linguado assado na brasa com molho de manteiga bife de atum chocos com ou sem tinta arroz de lampreia ou à bordalesa (…)
Passou à carne:
carne
pezinhos de coentrada feijoada à transmontana tripas à moda do Porto mãozinha de vitela com feijão branco posta mirandesa, dois cicerones desinteressaram-se da leitura e conversavam ao lado, com batatas a murro vitela assada carne à jardineira lombo, os restantes cicerones continuavam a segui-lo na leitura, de porco assado com castanhas espetada de porco preto língua estufada com ervilhas estufado de línguas de cabrito à Serra das Meadas arroz de sarrabulho rojões à moda do Minho frango no forno à moda de Baltar arroz de pica no chão arroz de pato à antiga portuguesa chanfana leitão da Bairrada coelho à caçador coelho assado na brasa coelho recheado entrecosto na brasa barriguinhas na brasa cabidela de miúdos de leitão (…)
Passou aos mariscos:
mariscos
percebes vieiras amêijoas à Bolhão Pato camarão da costa gamba média, os dois cicerones regressaram à leitura, e grande lagostins tigres grelhados maionese de lagosta lagosta suada, os restantes cicerones desinteressaram-se da leitura e puseram-se a conversar em círculo no meio do passeio; como não viu preçário perguntou É caro? O quê? perguntou o cicerone que lia por cima do ombro direito dele; Se os preços do restaurante são caros? insistiu, e o cicerone da esquerda respondeu Aqui nada se paga. Não se paga nada?! admirou-se o homem que foi parar ao inferno. Não! respondeu um dos cicerones que estava no círculo da conversa, e continuou Está tudo pago. Como é possível?! queria ele ainda saber, mas um outro cicerone, de todos o que tinha o rosto mais afogueado disse a modos de pôr termo ao assunto Sabe como é, são os apoios a fundo perdido, subsídios vários, coisas assim, há francesinhas à Luso (…)
sobremesas
pudim abade de Periscos (…)
Iam andando.
Estava o homem cada vez mais admirado e perguntou Mas é verdade que vocês tudo fazem para desviar as almas, isso é verdade, não é? Desviar as almas!? que patetice! veja bem: que interesse temos nós em desviar as almas?! O homem pensou um pouco e concluiu, De facto, não há interesse nisso! Claro que não, isso é conversa dos do céu; espalham essa ideia para terem clientela, mas eles é que estão às moscas, disse outro cicerone. Soubesse eu que era assim, ainda tinha feito mais umas asneiritas, lá na Terra! disse o homem. Não seria muito conveniente, disse outro cicerone, olhe que para aqui só vêm aqueles que fizeram o que tinham a fazer; isto não é lugar para mentirosos ou falsos; cada um é como é: quem merece o céu, tem o céu; quem merece o inferno, tem o inferno. Não me queixo, disse o homem, ainda que haja uma pequena coisa que eu gostaria de ver alterada. O que é? perguntou outro cicerone. Isto tem ar condicionado, não tem? Tem, tem ar condicionado; todos os espaços do inferno têm ar condicionado, o ar é todo condicionado. Pois aí é que está o problema, disse o homem, é que eu não suporto o ar condicionado: faz-me arder os olhos, seca-me a mucosa, irrita-me a garganta, causa-me comichão pelo corpo todo! Quanto a isso, não há nada a fazer, disse outro cicerone, está estabelecido assim, não temos hipóteses de alterar seja o que for. Mas, disse o homem, não há nenhum responsável a quem eu possa dar uma palavrinha!? Responsáveis há, disse o primeiro cicerone (aquele que lera a ementa por cima do ombro do homem…), eu posso falar a um responsável, mas não vai adiantar nada! Mesmo assim, gostava de falar com esse responsável, disse o homem.
Fizeram-lhe vir o gerente. Já me constou que o senhor tem problemas com o ar condicionado. É verdade, não me dou com o ar condicionado, vão ter que desligá-lo. Não é possível, disse o gerente. Pelo menos, o do meu quarto... Lamento, mas isso é impossível, disse o gerente, o Departamento da Qualidade de Vida não autoriza que se desligue o ar condicionado, já tivemos casos iguais e o Departamento foi intransigente. Mas, se eu falasse com alguém responsável pelo Departamento de Qualidade..., propôs o homem. Falar pode falar, mas não vai adiantar nada, disse o gerente.
O director do Departamento da Qualidade de Vida foi peremptório: Não há nada a fazer, o ar condicionado é ponto assente, ninguém no inferno pode abdicar dele! Mas, disse o homem, veja bem: o ar condicionado para mim é um incómodo total, não o suporto, é um inferno viver com ar condicionado! Pois se assim é, disse o director, não vejo inconveniente nenhum: viva o inferno, meu caro amigo, viva o inferno!
Fernando Hilário