domingo, 28 de novembro de 2010

O TEMPO

O que devemos exigir aos políticos, neste tempo em que pagamos pelas asneiras que fizeram, é que sejam exigentes com eles mesmos, no sentido de serem menos arrogantes, menos vaidosos, menos erráticos e, se possível, mais inteligentes. 


O CONTO DO RELÓGIO ANTIGO

Finalmente! o homem entrou na casa de antiguidades para comprar o relógio que um dia vira na montra. Desde esse dia, andou a namorá-lo vezes sem conta. Às vezes, a montra perdia alguns objectos, outras vezes ganhava outros, e o desarrumo era por vezes tão grande que se tornava difícil distinguir fosse que objecto fosse no desarrumo de tantos objectos; mas olha aqui, olha ali e o homem sempre descobria o seu relógio.
Punha-se a vê-lo, a mirá-lo… Ora, já o sabia de cor, se fechasse os olhos… sobre pedestal de pedra branca, o corpo obelisco em pau-santo, dois palmos de altura, torneado de flores, escaparate de lápis lazúli, com ponteiros em prata, finos como óbelos, as horas, em letra romana, também em prata, no auge, um leão triunfante sobre uma águia… sim, se fechasse os olhos, vê-lo-ia na memória tão nítido como ali na montra.  
Entrou, então. E o antiquário disse-lhe tratar-se de um relógio muito antigo e valioso, mas que seria em vão tentar repará-lo: Para tão antiga máquina, não há peças, já não há quem as fabrique! É pena, disse o homem, mas é antigo e belo, fico com ele. 
E o homem veio pelas ruas da cidade com o seu relógio embrulhado num papel azul às listas vermelhas e amarelas e atado com uma fita verde que o antiquário encontrou no desarrumo de uma gaveta.
Quando chegou a casa, o homem não trazia os olhos de costume, nem as mãos eram as mesmas. Nessa visível satisfação mostrou a preciosidade à mulher e disse-lhe quanto custara. Mas a mulher levou as mãos à cabeça e lamentou que fosse seu homem tão tolo, pois pagava fortunas por coisas sem valia nem préstimo. Com habituada paciência, fez de conta o homem que ali falava um asno, e fechou-se na sala.
A mulher ameaçava do corredor não lhe fazer o jantar, nem sequer isso! Que era um tonto, um tolo aquele seu homem! E mais isto e mais aquilo. Mas, findo algum tempo, emudeceu.
Instituído o silêncio, o homem colocou sobre a mesa o relógio e sentou-se diante dele.
Agora também podia afagá-lo, cheirar o tempo, tactear a idade, presumir a vida que fora sua, como chegara até ali, como exactamente chegara à casa de antiguidades…
O antiquário apenas lhe dissera tratar-se dum relógio muito antigo e valioso. E a ele não lhe ocorrera perguntar… Não lhe ocorreu perguntar e também pouco lhe disse o antiquário.
Estava o homem nesta eucaristia, pareceu-lhe ouvir um tic-tac… Ora, podia lá ser! o relógio não trabalhava, o próprio antiquário lhe dissera que não havia peças para máquina tão antiga, nem quem as soubesse fabricar! Mas ao homem também lhe pareceu ver, seria ilusão, fantasia sua ou não seria, o ponteiro dos minutos a dar um pulo no lápis lazúli do mostrador, e, no tempo que durou certamente um minuto, o relógio anunciou pim pim pim pim pim pim pim, sete horas, festivas, pimponas; e o homem achou-se feliz, tão feliz que agradecia e chorava a Deus ter-lhe dado uma mulher assim.

sábado, 20 de novembro de 2010

MARAVILHA DE CÃO

                           

Quando a maquineta da Via Verde faz “pi”, eu sinto a mão do político a entrar no meu bolso. Nos descontos do meu vencimento, nos impostos que pago, no custo do que é essencial à vida…, também.
No tempo em que vivo, tenho a consciência plena de que a classe política não respeita a minha cidadania e que o tempo em que vivo é de uma fraude absoluta…
Obama elogiou o esforço de Sócrates para ultrapassar a crise: Obama elogia, afinal, o roubo de que somos vítimas.
Obama disse que “o Bo é o membro mais popular da Casa Branca”. Maravilha de Cão.

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Deixo-vos com um conto que escrevi para a Escrita de Mel e Água, do Jornal de Notícias, mas (creio) que não chegou a ser publicado.

                                              
                                                                              PERSONAGEM DE QUADRO

            Uma sala quase vazia: uma mesa redonda, duas cadeiras, um sofá velho, um quadro na parede e ele.
            Ele também já era velho. Passava muito tempo, sozinho, ali, naquela sala, a recordar o que fora a vida.
            Quase não comia.
A comida enjoava-o.
E dormia, quase sempre, ali, no sofá.
            A sua maior agitação era quando decidia ir até à janela do fundo da sala e ficar algum tempo a olhar a rua.
Mas não se pense que era grande a sala; não: a sala era uma pequena sala quadrada.
Parecia-lhe a ele grande, e muito distante do sofá a janela do fundo.
Mas não eram.  
            Outra agitação era ir à cozinha preparar qualquer coisa para comer; é: tinha que comer!
            E outra agitação era ir ao quarto de banho.
            Mas não se pense que as outras divisões da casa eram grandes e que distantes ficavam umas das outras; não: a casa, toda ela, era pequena; ele é que a achava grande, demasiadamente grande, e com as divisões muito distantes umas das outras.
            Às vezes, à casa vinha uma vizinha amiga para saber se fazia falta alguma coisa e conversar um pouco.
            Quando isso acontecia, falava ele tanto que se tornava maçador, e, às vezes, ou quase sempre, sem saber ao certo a razão, chorava.
            A vizinha, que tinha a sua vida, não ficava por lá muito tempo.
            Mas ficava algum. A ele, porém, parecia-lhe visita de médico.
            Duas vezes por mês, à casa vinha uma filha para trazer roupa lavada, coisas de comer e perguntar se fazia falta alguma coisa.
Quando isso acontecia, falava, tornava-se maçador e acabava por chorar.
A filha tinha a sua vida, e não ficava por lá muito tempo.
Depois, voltava ele a ficar ali, àquela casa entregue, entregue àquelas suas agitações…
            Mas um dia aconteceu uma coisa diferente. Ouviu ele alguém falar na sala, sem que, aparentemente, houvesse alguém na sala que fosse capaz de falar.
            De início, atrapalhou-se um pouco, sentiu até medo.
            Mas logo que percebeu quem falava, achou-se bem, ficou contente.
            E passou a sua vida a ser outra.
            É claro que continuou a casa a ter as divisões do mesmo tamanho e à mesma distância umas das outras.
            E é claro que a janela do fundo da sala continuava no fundo da sala, etc.
            Mas agora arranjara companhia, e quando vinha a vizinha visitá-lo, ele já tinha outras coisas para dizer, e não chorava.
Muito se ria a vizinha das coisas que ele lhe contava. E se não tivesse ela a sua vida, ficaria por lá muito mais tempo, a ouvi-lo falar das conversas que tinha com o velho do quadro.
Sim, a falar com o velho do quadro, que tão velho era quanto ele.

                                                                                  Fernando Hilário

sábado, 13 de novembro de 2010

O QUE HÁ PARA AVALIAR


                O modelo de Avaliação do Desempenho Docente (ADD) é um daqueles mimos da educação em Portugal, cuja génese se ficou a dever à ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues e que, de algum modo, Isabel Alçada dá continuidade. Objecto de muita contestação por parte dos professores, no início do ano lectivo de 2008-09, e das negociações sindicais, o modelo, ao perder a figura e o papel do Professor Titular, parecia ganhar um outro rosto, uma outra essência, mas o facto é que não ganhou.
Saiu de cena o Professor Titular, a quem, entre outras inconfessadas funções, cabia a “competência” de Avaliador dos professores do processo de ADD, nomeadamente das aulas observadas. Hoje, essa função é atribuída a um outro professor, mas provem igualmente duma arbitrariedade funcional. Só por mera casualidade, o professor designado terá formação ajustada para avaliar processos científicos e didáctico-pedagógicos dos seus colegas, pois é disso que se trata, apesar do eufemismo do modelo o denominar Relator. De facto, a este professor cabe avaliar o conjunto de dados e desempenhos, relacionados com o professor observado, e atribuir-lhe uma classificação.
A avaliação por pares, quando não circunscrita a um trabalho estritamente cooperativo, visando, tão-só, a troca de experiências e a mútua aprendizagem, fere princípios deontológicos, já que leva à diluição de estatutos, cargos e competências. Por outro lado, não garante o distanciamento e a objectividade, imprescindíveis a uma avaliação que se pretenderá séria.
A avaliação de professores deve decorrer de processos sistémicos, susceptíveis de avaliar o trabalho metódico, criativo e inovador, desenvolvido individualmente ou no âmbito de equipas pedagógicas. A avaliação com base em modelos tipificados tende a empobrecer as iniciativas inovadoras, a criatividade e a constante procura de novas abordagens de que os processos ensino-aprendizagem sempre carecem. Os modelos de avaliação baseados em grelhas pré-definidas impedem a observação e valorização das especificidades (de atitudes e desempenhos particulares, das características do ser e do fazer individual) que nelas não estão contempladas.
A Escola deve ser o lugar da diversidade, da salutar confrontação de valores e saberes e da constante reflexão sobre as novas abordagens e metodologias. A escola dinâmica, actual e interventiva, é incompatível, na essência e na forma, com modelos de avaliação burocratizantes, bizantinos, inexequíveis no tempo e no modo próprios, geradores de dispersão e perda de tempo, pouco claros nos seus pressupostos e objectivos e alheados dos reais interesses pedagógicos e científicos.


O MUNDO TODO NA CABEÇA
(conto inédito)


Com um pau riscava o pó do chão e no chão nascia um mundo de árvores, animais, folhas, flores, frutos e um rio e um céu limpo e uma ponte entre as margens e tudo. Mas levantou-se um vento que levou os desenhos do chão e o chão ficou de novo liso. Mas como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pô-lo outra vez no chão.
Sulcava a água do lago com um pau e a água deixava-se sulcar e animavam-se nela desenhos e mais desenhos, os seus e os que a água também fazia; mas a água guardava os desenhos, e breve era um espelho liso. Não tinha importância. Como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pô-lo outra vez na superfície imóvel da água do lago.
Só lhe faltava chegar ao céu.
Um dia, arranjou uma vara tão grande que chegou lá; e com ela pôs-se a riscar o céu.
Os riscos rasgavam de branco o céu azul; mas a cada risco branco o céu logo se fechava, e ficava um céu de azul liso. Mas como tinha o mundo pintado na cabeça, se quisesse podia pintá-lo outra vez no céu. Só lhe fazia falta uma vara que fosse grande. Guardou então a sua vara muito bem guardada, pois não é fácil encontrar varas assim tão grandes.
Quando a noite chegou, tinha a certeza que aquelas estrelas e aquelas nuvens mais a lua em quarto crescente eram as que ele tinha pintado. E adormeceu sobre uma pedra à beira do lago com o mundo todo na cabeça.

                                                                                                                  Fernando Hilário

sábado, 6 de novembro de 2010

AFINAL, PARA QUEM FALAM OS POLÍTICOS?


Na mais feliz e vaidosa das oratórias se achou certamente o ministro Santos Silva, quando discursou na última sessão do Parlamento. O empolgado orador fez recurso da metáfora, serviu-se dos mitos e dos símbolos, para uma retórica que quis muito adornada e eficazmente persuasiva. Dir-se-ia um momento brilhante, de grande enlevo verbal, de grande erudição.
A mim me parece tal verborreia, coisa já ultrapassada, sublime pirosice, paráfrase prenhe de citação enciclopédica. Mas esta apreciação talvez não interesse.
Interessará saber, isso sim, para quem falava o ministro. Sim, sabemos que falava para si próprio e para os outros políticos. Mas tirando esta corte, para quem falava o ministro?
Afinal, para quem falam os políticos?


O CONTO DO HOMEM QUE FOI PARAR AO INFERNO (Inédito)

Um homem foi parar ao inferno. O porteiro encaminhou-o para a Secção de Registos; registou-se, depois uns cicerones da área das relações públicas levaram-no a visitar o inferno, a conhecer a vida, como era, o que podia fazer.
O homem estava admirado, tão admirado que até perguntou se ali em vez do inferno não era o céu. Quiseram saber por que se admirava. Porque é tudo tão agradável! tão simpático! até parece o céu! Mas o senhor conhece o céu? perguntaram-lhe. Não, não conheço! A que se deve, então, a dúvida? O homem calou-se; enganaram-no a vida toda, sempre lhe disseram que o inferno era o fogo ardente, onde sofreria, e, afinal, parecia a vida no inferno um sonho! Saiba que, disse um dos cicerones, a nossa preocupação é que todos se sintam bem no inferno! Mas diz-se tão mal do inferno! disse o homem. Quem diz? perguntou outro cicerone. Toda a gente. Quem? A gente da Terra. Ah, bom, isso sim, essa gente diz mal, mas como pode constatar não corresponde à verdade. Pelos vistos, não, concluiu o homem, e continuou: Mas porque será que dizem mal, se o inferno não é nada do que dizem?! É marketing, disse outro cicerone, o céu não consegue oferecer as nossas condições, por isso, dizem mal; em contrapartida, nunca ninguém nos ouviu dizer mal do céu; a nossa política é simples: deixamos que os outros falem por nós...
Iam andando, os cicerones mostravam o inferno, falavam dele e da vida. O homem estava admirado. Parecia que nada faltava, tudo tinha um ar pós-moderno, nada minimalista, nem sequer espartano, mas sim de shopping luxuoso; as pessoas que se cruzavam com eles nos corredores refulgiam alegria, boa disposição, contentamento; os rostos reluziam, os olhares faiscavam… Na zona da restauração, pararam, coisa digna de se ver, um restaurante estava a abarrotar de gente; tinha paredes e telhados de vidro; era o Zé do Pipo; espiou a ementa exposta à entrada em retábulo debruado com uma parreira em baixo-relevo:
petiscos
bucho chispe orelha de porco fígado de cebolada coração frito torresmos  bacalhau frito  pataniscas de bacalhau  pastéis de bacalhau  caracóis à lisbonense chouriço assado na brasa  favas estufadas com chouriço, os cicerones liam com ele, peixinhos da horta  enguias de barrica  filetes de sardinha  sardinha frita sardinha de escabeche  sardinha assada na brasa  caparau frito  pratinhos de moelas  rissóis de vitela e de camarão  chamuças  croquetes  temos broa de Avintes (…)
            Passou ao peixe:
peixe
 cabeça de pescada cozida com bom colarinho  pescada cozida com batata e feijão verde  pescada frita com batata frita e arroz seco ou malandro  filetes de tamboril com arroz do mesmo  filetes de polvo com arroz do mesmo  polvo à lagareiro sável frito  há mílharas! Os cicerones seguiam-no na leitura, sável de escabeche  chicharro assado na brasa com molho verde  espetada de lulas com gambas  bacalhau cozido com todos  bacalhau cozido com grão  meia desfeita com grão-de-bico  empadão de bacalhau bacalhau à Zé do Pipo  bacalhau assado no forno com grelos  bacalhau com natas  bacalhau com broa  bacalhau de segredo bacalhau à espanhola  bacalhau à Gomes de Sá  lombinhos de bacalhau frito com arroz malandro de feijão vermelho ou de grelos  arroz de bacalhau com ovos escalfados  bacalhau à demo  bacalhau nunca visto  cavala cozida  peixe-espada frito  fanecas fritas  raia cozida  cherne à Durão só por encomenda  robalo ao sal  linguado assado na brasa com molho de manteiga  bife de atum  chocos com ou sem tinta  arroz de lampreia ou à bordalesa (…)
            Passou à carne:
carne
 pezinhos de coentrada  feijoada à transmontana  tripas à moda do Porto  mãozinha de vitela com feijão branco  posta mirandesa, dois cicerones desinteressaram-se da leitura e conversavam ao lado, com batatas a murro  vitela assada  carne à jardineira  lombo, os restantes cicerones continuavam a segui-lo na leitura,  de porco assado com castanhas  espetada de porco preto  língua estufada com ervilhas  estufado de línguas de cabrito à Serra das Meadas  arroz de sarrabulho  rojões à moda do Minho  frango no forno à moda de Baltar  arroz de pica no chão  arroz de pato à antiga portuguesa  chanfana  leitão da Bairrada  coelho à caçador  coelho assado na brasa  coelho recheado  entrecosto na brasa  barriguinhas na brasa  cabidela de miúdos de leitão (…)
            Passou aos mariscos:
            mariscos
percebes  vieiras  amêijoas à Bolhão Pato  camarão da costa  gamba média, os dois cicerones regressaram à leitura, e grande  lagostins  tigres grelhados  maionese de lagosta  lagosta suada, os restantes cicerones desinteressaram-se da leitura e puseram-se a conversar em círculo no meio do passeio; como não viu preçário perguntou É caro? O quê? perguntou o cicerone que lia por cima do ombro direito dele; Se os preços do restaurante são caros? insistiu, e o cicerone da esquerda respondeu Aqui nada se paga. Não se paga nada?! admirou-se o homem que foi parar ao inferno. Não! respondeu um dos cicerones que estava no círculo da conversa, e continuou Está tudo pago. Como é possível?! queria ele ainda saber, mas um outro cicerone, de todos o que tinha o  rosto mais afogueado disse a modos de pôr termo ao assunto Sabe como é, são os apoios a fundo perdido, subsídios vários, coisas assim, há francesinhas à Luso (…)
            sobremesas
pudim abade de Periscos (…) 
Iam andando.  
Estava o homem cada vez mais admirado e perguntou Mas é verdade que vocês tudo fazem para desviar as almas, isso é verdade, não é? Desviar as almas!? que patetice! veja bem: que interesse temos nós em desviar as almas?! O homem pensou um pouco e concluiu, De facto, não há interesse nisso! Claro que não, isso é conversa dos do céu; espalham essa ideia para terem clientela, mas eles é que estão às moscas, disse outro cicerone. Soubesse eu que era assim, ainda tinha feito mais umas asneiritas, lá na Terra! disse o homem. Não seria muito conveniente, disse outro cicerone, olhe que para aqui só vêm aqueles que fizeram o que tinham a fazer; isto não é lugar para mentirosos ou falsos; cada um é como é: quem merece o céu, tem o céu; quem merece o inferno, tem o inferno. Não me queixo, disse o homem, ainda que haja uma pequena coisa que eu gostaria de ver alterada. O que é? perguntou outro cicerone. Isto tem ar condicionado, não tem? Tem, tem ar condicionado; todos os espaços do inferno têm ar condicionado, o ar é todo condicionado. Pois aí é que está o problema, disse o homem, é que eu não suporto o ar condicionado: faz-me arder os olhos, seca-me a mucosa, irrita-me a garganta, causa-me comichão pelo corpo todo! Quanto a isso, não há nada a fazer, disse outro cicerone, está estabelecido assim, não temos hipóteses de alterar seja o que for. Mas, disse o homem, não há nenhum responsável a quem eu possa dar uma palavrinha!? Responsáveis há, disse o primeiro cicerone (aquele que lera a ementa por cima do ombro do homem…), eu posso falar a um responsável, mas não vai adiantar nada! Mesmo assim, gostava de falar com esse responsável, disse o homem.
Fizeram-lhe vir o gerente. Já me constou que o senhor tem problemas com o ar condicionado. É verdade, não me dou com o ar condicionado, vão ter que desligá-lo. Não é possível, disse o gerente. Pelo menos, o do meu quarto... Lamento, mas isso é impossível, disse o gerente, o Departamento da Qualidade de Vida não autoriza que se desligue o ar condicionado, já tivemos casos iguais e o Departamento foi intransigente. Mas, se eu falasse com alguém responsável pelo Departamento de Qualidade..., propôs o homem. Falar pode falar, mas não vai adiantar nada, disse o gerente.
O director do Departamento da Qualidade de Vida foi peremptório: Não há nada a fazer, o ar condicionado é ponto assente, ninguém no inferno pode abdicar dele! Mas, disse o homem, veja bem: o ar condicionado para mim é um incómodo total, não o suporto, é um inferno viver com ar condicionado! Pois se assim é, disse o director, não vejo inconveniente nenhum: viva o inferno, meu caro amigo, viva o inferno!

                                                                                  Fernando Hilário