sábado, 25 de dezembro de 2010

A NOITE QUE FOI DE NATAL

E o velho, incomodado, cansado, retirou-se. Já não aguentava mais. Queria ir deitar-se. E, amparado por netos e filhos, foi para o quarto. A cama era tudo quanto desejava.
Dera a meia-noite. Alguém em figura de Pai Natal andou a distribuir as prendas. Já nada justificava que ali continuasse, em sacrifício. Doíam-lhe as pernas. Com tanta doçaria, doía-lhe a barriga. Com tanto frenesim, o coração era-lhe um cavalo desenfreado. Os outros que ficassem; eram novos, a festa era deles.
O Pai Natal fora generoso. Dera-lhe um maço de tabaco aromático e um cachimbo de marca. Há muito que deixara de fumar. Mas talvez alguém não tivesse notado o facto. Dera-lhe um livro para ler. Um belo livro, por sinal, de um autor consagrado, na calha do Nobel. Há muito que deixara de ler. Só esporadicamente o fazia, com a lupa que o Pai Natal do ano anterior lhe dera; utilizava-a para ler o jornal. Mas talvez alguém não tivesse notado esse facto. Dera-lhe umas fofas e quentinhas pantufas, iguais às que sempre desejou ter. Mas há três anos consecutivos que recebia como prenda de Natal umas pantufas iguais; ou melhor, quase iguais: as do ano anterior não lhe serviam (dois números abaixo), e cada um dos três pares tinha um xadrez que variava de cor: sobre o verde, sobre o azul, sobre o vermelho. Mas talvez alguém não tivesse notado o facto. Dera-lhe um roupão. Um belo roupão. Um roupão igual ao que lhe deram os filhos, três meses antes, quando fez anos. Mas talvez alguém não tivesse reparado no facto.
Chegou ao quarto e pediu que o deixassem ser ele a deitar-se, não iria precisar de ajuda, que voltassem para a festa. Boa-noite. Até amanhã. Durma bem.
Estava cansado. Todo o corpo lhe doía. Mas não tinha sono, tinha-o espalhado. O seu horário não era aquele.
Pôs-se, então, a rever os seus presentes, as prendas que lhe deram. Foi-as vendo e foi-as guardando nos sítios certos.
Era uma extraordinária colecção de cachimbos. Alguns, peças invulgares. Outros, memórias quase sem data. Outros, peças sem interesse.
Arrumou o roupão. Cheirava a novo, mas era rigorosamente igual ao que lhe haviam dado nos seus anos, três meses antes. Um roupão em tons roxos, azuis-celestes, amarelos-desmaiados. Eram assim, mas ele gostava deles. Lembrava-se que já tivera um casaco de quarto assim. Alguém podia ter-se lembrado de lhe dar um igual. Mas ninguém se lembrou.
Arrumou as pantufas. De facto, lá estavam as outras, alinhadas. Também o que se pode dar a um velho como eu?! – pensou.
Deixou o livro na pequena mesa do quarto. E começou a despir-se.
Podiam ter-me dado um pijama. Isso, sim, faz-me falta. Este está mais velho do que eu. Mas ninguém se lembrou disso.
Deitou-se na cama. Sentia-a fria. Era uma noite fria de Natal.
Até ele vinham os sons animados da sala. Cantava-se, por vezes. Outras vezes, eram gargalhadas conjuntas, risos colectivos. Por vezes, chegavam sons sussurrados, indistintos.
Não conseguia dormir. Também ainda não tomara os medicamentos. Tomou-os. Uma caterva deles. E ficou à espera que o sono viesse via medicina. Que amainasse aquele galopar. Aquele não era o seu horário.
Incomodado, cansado, mesmo sobressaltado, levantou-se. Talvez no cadeirão se sentisse melhor. Vestiu, então, o roupão. Sem saber bem porquê, vestiu o roupão novo. E também calçou as pantufas novas. Foi pegar um cachimbo. Optou por um com muito tempo. Acariciou-o. Acariciou também o livro. Provavelmente um belo livro. Pegou na lupa. E assim se deixou estar. Talvez serenasse. Talvez adormecesse.
De manhã, deram com ele sentado no cadeirão; talvez fingindo que fumava e lia.

Fernando Hilário, “Escrita de Mel e Água”, Jornal de Notícias, Sexta-feira,
27 de Dezembro de 1996   

domingo, 19 de dezembro de 2010

EM VÉSPERAS DE NATAL


Quando Cavaco Silva diz que “a nossa cara estava perto da parede”, é preciso que se diga (que se esclareça) que essa cara é a dele e a dos políticos que nos desgovernaram nos últimos anos e não a cara dos portugueses que em nada contribuíram para a crise vergonhosa em que nos encontramos.

De resto, se Cavaco Presidente da República aborreceu e aborrece, Cavaco Presidente em campanha para a Presidência da República aborrece muito mais, dir-se-ia mesmo que já não se aguenta.

“Véspera de Natal” foi publicado na rubrica Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, há mais de uma década. É um conto baseado numa situação real e, talvez por isso, mais do que recorrer ao artifício literário, a sua escrita pretende cingir-se à realidade presenciada e vivida pelo autor.


VÉSPERA DE NATAL

A rapariga entrou com a mãe e uma irmã mais nova. Havia muita gente à espera de ser atendida. Era véspera de Natal e as prendas levavam tempo a vestir com papel colorido e laçarote. Também havia quem comprasse muita coisa e lhe custasse a decidir: Levo isto. Não: levo aquilo. Pensando bem, prefiro isto.
A mulher que atendia num balcão acanhado levantava a cada instante os olhos para o todo da loja e era pouco lesta a aviar a clientela. A loja estava apinhada de gente que espiava tudo e em tudo bulia. Por isso, a mulher, que me pareceu ser a proprietária, vigiava constantemente.
Uma outra mulher ocupava-se dos embrulhos. Mas era muito lenta, como se fosse inexperiente. Tinha, porém, a preocupação de agradar; deixava para os clientes a escolha do papel e da cor do laço. Mas havia sempre mais uma mão que passava a estender o papel, a alisá-lo, a vincá-lo; sempre mais uma tirinha de fita-cola, não fosse por ali o embrulho desfazer-se; sempre mais um toque e ainda mais outro, no laço, e depois a ver como caiam as pontas. As mãos hesitavam sempre, tremiam, demoravam na decisão. Cada embrulho era um enjoo.
Eu aguardava a minha vez. Só estava ali para comprar um jornal. Mas não tinha pressa. E divertia-me com toda aquela trapalhada de gente, prendas, papéis e laços, sobretudo com os olhos vigilantes da proprietária, nervosos e miudinhos, a ver se alguém punha asas nas coisas da sua loja.
De repente, a rapariga encontrou o que a fez vir ali. Disse à mãe que eram as caixinhas em escaparate num pequeno armário.
 – É isto, aqui. Vê, mãe? – disse ela, entusiasmada.
A mãe baixou-se para ver, libertou uma expressão de certa anuência e recompôs-se. Logo depois, a filha segredou-lhe, mas num tom que não pude deixar de ouvir:
– É isto que eu gostava de ter. E, no mesmo instante, a mãe perguntou:
– Diz lá outra vez como se chama!
Então, a rapariga subiu-lhe ao ouvido e ter-lhe-á soletrado: Com…pa…sso.
A irmã fora colar-se ao balcão, rendida aos malabarismos da mulher que embrulhava as prendas. Estava agora à minha frente, com a cabecita a jeito para uma brincadeira. Não resisti: fiz-lhe uma festa disfarçada. Num movimento rápido, voltou-se e olhou-me num instante de dúvida. Eu terei deixado escapar alguma expressão que a fez concluir ser eu o autor da brincadeira. Sorriu e regressou ao malabarismo. Pouco tempo depois, toquei-lhe no ombro mais distante, mas a brincadeira não resultou em nada, ela já não saía do colorido dos embrulhos.
Com voz atarefada ouvi a proprietária perguntar uma vez mais pelo cliente seguinte:
– Quem está a seguir?
Era eu. Mas a mãe da rapariga tomou-me a vez: avançou para o balcão e disse à filha que perguntasse pelo que vinha. Do modo como agiu, ficou-me a sensação de não ter o propósito de me passar à frente. Por isso não reagi. E confesso que não me desagradava prolongar aquele tempo.
– Faça o favor! – disse a proprietária.
E a rapariga, apontando para a montra do pequeno armário, disse que gostava de ver as caixinhas dos compassos. A mulher foi buscar três e pô-las sobre o balcão. Foi então que a rapariga iniciou um jogo que consistia em pegar nas caixas, uma de cada vez, e perscrutar-lhes o interior.
Era um jogo repetido e longo. A mãe assistia calada. A proprietária ia repartindo o olhar pela rapariga e a loja. A irmã da rapariga cansara-se do jogo e voltou a colar-se ao balcão, novamente rendida ao malabarismo da mulher dos embrulhos.
Eram três marcas diferentes de compassos. Uma delas, eu conhecia do liceu. Ao tempo, era indiscutivelmente a melhor e também a mais cara. Muito namorei um desses estojos, com compasso, tira-linhas, várias pontas, caixinha de minas…, muito completo, que a Papelaria Central exibia, em destaque na montra: caixinha preta, elegante, de tampa a abrir como de baú; as peças acomodadas numa ergonomia de flanela azul… ou verde? Já não sei… Namorei-o, mas para mim foi estojo que nunca saiu da montra da Papelaria Central.
A rapariga parecia enfeitiçada com as caixinhas. E eu estive quase para me intrometer, opinando. Mas não o fiz. De qualquer modo, a mãe dela não me daria tempo. É que, a modos de pôr termo àquela dança de caixas, ela rompeu a perguntar:
– Quanto custa isto?
A proprietária foi então pegando nas caixas e, à medida que lia os preços na etiqueta colocada na parte de baixo, ia dizendo:
– Esta custa setecentos escudos; esta, novecentos; e esta, mil e duzentos.
Mas esta revelação não caiu bem na mãe da rapariga:
– A mais barata custa setecentos escudos?! – disse ela, com grande espanto. E, voltando-se para a filha, continuou:
– Eu não dou setecentos escudos por esta coisa! Não faltava mais nada! Aliás, para que queres tu uma porcaria destas?!
Atraídas por aquela voz desgovernada, as pessoas próximas puseram-se a olhar mãe e filha. A mulher dos embrulhos deixou a meio o corte da tirinha de fita-cola. A irmã da rapariga estava pendurada na interrogação daquele momento. Por instantes, a proprietária ter-se-á esquecido de vigiar a loja. Petrificada, a rapariga deixava os olhos nas caixinhas. E eu já previa o desenlace daquela cena.
Não me enganei: num rompante, a mãe pediu desculpa à proprietária, Desculpe!; arrancou a filha mais nova do balcão e desandou loja fora. Atrás, com passos de tristeza e, certamente, de vergonha, seguiu a rapariga.
Apanhando-me ali, a proprietária encolheu os ombros num gesto a que eu não reagi nem quis compreender. E, quando lhe pedi o jornal que ali me trouxera, já a animação anterior às caixinhas dos compassos se tinha instalado na loja.


                                     Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, JN.         
   

domingo, 12 de dezembro de 2010

ÁRVORE, FLOR E AVE

Em 1997, numa sexta-feira de 13 de Julho, eu trazia para a Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, uma crónica de Inocência e Culpa sobre o acto ou os actos de escrever. Reli-a, há uns dias atrás, e devo confessar que ela, a referida crónica, ou o ofício da escrita ou o tempo que se meteu entre nós de então até hoje, ou o que fosse, fizeram-me nascer umas lágrimas, que eu desconhecia serem ainda tão grossas, nos meus olhos, diga-se, um pouco já cansados, e meteram-se a escorrer pela face abaixo, como rios. Algumas delas vieram dar ao canto da boca onde a língua prontamente as recolheu – lágrimas como frios rios que correm para dentro de nós. Às outras desfiz-lhes os caminhos, secando-as com as mãos.
Ilustrava a crónica um texto-desenho meu, um concretismo de letras e palavras desenhadas e desenhadoras de coisas, que, com pena minha, aqui não consigo reproduzir… Deixo-vos o texto apenas verbal.


INOCÊNCIA E CULPA

Escrever é um pouco como ter um pedaço de terra para onde se lançam sementes. Como vão as sementes germinar, que colheita se há-de vir a fazer, não se sabe. Desde o tempo das sementes encontrarem a terra ou de as palavras a folha de papel semeia-se a incerteza e a esperança. Mas é, talvez, nessa temporalidade de dúvida e de expectativa, nesse tempo de segredo das coisas, que maior é a tensão, o gozo ou o prazer de quem escreve e lê. Tal como semear, escrever é um gesto empenhado, atitude de quem quer revelar aos outros um pouco, ou muito, de si, daquilo que é ou de que é capaz. E, escrever, tal como semear, é sempre um acto de luta, de criação, de libertação.
Ao certo não sei por que trouxe hoje aqui esta imagem de sementes e palavras, de terra e folha de papel, de segredos e de colheitas reveladas. Tanto mais que não é, com certeza, uma imagem inédita. Muitos outros, antes de mim, tê-la-ão já utilizado no propósito de se surpreenderem a si mesmos e aos outros, no intuito de mostrarem um lado ainda oculto das palavras ou uma seara ainda não vista.
Não sei por que trouxe para aqui tal imagem. Mas isso talvez nem interesse. O certo é que já lancei as palavras, o gesto foi o gesto que foi, e o que há para ver já está sob o olhar.
Não sei ao certo as intenções inconfessadas desta crónica, mas ocorre-me a extraordinária ideia de, numa realidade possível ou numa virtualidade desejada, lançar palavras à terra e sementes para uma folha de papel. Ocorre-me a maravilhosa visão de numa folha de papel escrever ÁRVORE, e da palavra aí nascer uma árvore, pequenina, como tudo o que nasce, esperar depois o tempo preciso para vê-la crescida e dar frutos, e depois colhê-los saborosamente.
 Ocorre-me a não menos maravilhosa visão de lançar a palavra FLOR a um campo de terra e aí nascer a concreta linguagem de uma flor de palavras – sim: uma flor toda ela de letras e palavras, desde a raiz às pétalas.
Dir-me-ão que sou louco, que estou louco. Mas talvez não. Acho que não, ou talvez sim, talvez até esteja louco… Mas apenas comunico o que é estranho, o que pode parecer estranho.
O leitor (você, leitor) que já me disse nada perceber de certas crónicas minhas, vai desta vez achar-me completamente louco. E, como ele, achar-me-ão louco todos os leitores para quem o gesto de lançar sementes é um gesto repetido e sempre igual; os leitores que, inocentemente culpados, têm matado as palavras até ao seu ser mais pequeno.
Mas, leitor, deixa-me ser assim louco! Deixa-me ser assim, que é saudável esta loucura! E deixa-me também que te tente numa loucura igual: pega num lápis e sobre um implacável folha branca de papel escreve a palavra AVE. Escreve-a, e depois fica à espera que a palavra se faça ave. E depois hás-de saber ainda esperar que ela se levante voo, e depois voe pelo espaço que souberes imaginar.

Fernando Hilário

domingo, 5 de dezembro de 2010

A EXPLICAÇÃO DAS COISAS


Por vezes, o imprevisto e o inédito das coisas que nos acontecem, levam-nos a não termos ou não acharmos uma explicação. De outras vezes, porém, a explicação é tão óbvia e está tão perto de nós que não conseguimos vê-la. Só não há sobressaltos na recorrência das coisas.  


          HISTÓRIA DE UM PINTOR QUE QUERIA PINTAR GOTAS DE ÁGUA

Havia um pintor que queria pintar gotas de água. E pintava-as: de azul, de rosa, de verde, de vermelho... Mas logo as gotas de água se desfaziam em manchas de tinta. E o pintor ficava triste.
Muito triste, porque o que ele queria era pintar uma gota de água que se mantivesse em gota de água colorida. E bastava-lhe conseguir uma, uma só que fosse, para se sentir um pintor feliz.
Para tanto, pensou que com um mais fino e mais macio pincel, talvez conseguisse pintar uma gota de água. Teria que ser um pincel muito fino, muito macio…
De entre os muitos pincéis que tinha, acabou por achar um que era muito, muito delicado.
Molhou-o então na tinta e, cuidadosamente, aproximou-o de uma gota de água; porém, logo a gota se desfez numa mancha de tinta. Sim: a gota desfez-se numa mancha de tinta.
E o pintor ficou ainda mais triste e mais infeliz.
Mais uma vez tentou, e outra, e mais outra, muitas vezes, até que o pintor percebeu que as gotas de água engordam com a tinta, por pouca que seja, e rebentam.
São as gotas de água tão delicadas que não se deixam pintar! E gotas coloridas… Só se as imaginarmos! concluía o pintor.

                           In Histórias Exemplarmente Imperfeitas (textos inéditos)     
                                                                                        Fernando Hilário