domingo, 19 de dezembro de 2010

EM VÉSPERAS DE NATAL


Quando Cavaco Silva diz que “a nossa cara estava perto da parede”, é preciso que se diga (que se esclareça) que essa cara é a dele e a dos políticos que nos desgovernaram nos últimos anos e não a cara dos portugueses que em nada contribuíram para a crise vergonhosa em que nos encontramos.

De resto, se Cavaco Presidente da República aborreceu e aborrece, Cavaco Presidente em campanha para a Presidência da República aborrece muito mais, dir-se-ia mesmo que já não se aguenta.

“Véspera de Natal” foi publicado na rubrica Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, há mais de uma década. É um conto baseado numa situação real e, talvez por isso, mais do que recorrer ao artifício literário, a sua escrita pretende cingir-se à realidade presenciada e vivida pelo autor.


VÉSPERA DE NATAL

A rapariga entrou com a mãe e uma irmã mais nova. Havia muita gente à espera de ser atendida. Era véspera de Natal e as prendas levavam tempo a vestir com papel colorido e laçarote. Também havia quem comprasse muita coisa e lhe custasse a decidir: Levo isto. Não: levo aquilo. Pensando bem, prefiro isto.
A mulher que atendia num balcão acanhado levantava a cada instante os olhos para o todo da loja e era pouco lesta a aviar a clientela. A loja estava apinhada de gente que espiava tudo e em tudo bulia. Por isso, a mulher, que me pareceu ser a proprietária, vigiava constantemente.
Uma outra mulher ocupava-se dos embrulhos. Mas era muito lenta, como se fosse inexperiente. Tinha, porém, a preocupação de agradar; deixava para os clientes a escolha do papel e da cor do laço. Mas havia sempre mais uma mão que passava a estender o papel, a alisá-lo, a vincá-lo; sempre mais uma tirinha de fita-cola, não fosse por ali o embrulho desfazer-se; sempre mais um toque e ainda mais outro, no laço, e depois a ver como caiam as pontas. As mãos hesitavam sempre, tremiam, demoravam na decisão. Cada embrulho era um enjoo.
Eu aguardava a minha vez. Só estava ali para comprar um jornal. Mas não tinha pressa. E divertia-me com toda aquela trapalhada de gente, prendas, papéis e laços, sobretudo com os olhos vigilantes da proprietária, nervosos e miudinhos, a ver se alguém punha asas nas coisas da sua loja.
De repente, a rapariga encontrou o que a fez vir ali. Disse à mãe que eram as caixinhas em escaparate num pequeno armário.
 – É isto, aqui. Vê, mãe? – disse ela, entusiasmada.
A mãe baixou-se para ver, libertou uma expressão de certa anuência e recompôs-se. Logo depois, a filha segredou-lhe, mas num tom que não pude deixar de ouvir:
– É isto que eu gostava de ter. E, no mesmo instante, a mãe perguntou:
– Diz lá outra vez como se chama!
Então, a rapariga subiu-lhe ao ouvido e ter-lhe-á soletrado: Com…pa…sso.
A irmã fora colar-se ao balcão, rendida aos malabarismos da mulher que embrulhava as prendas. Estava agora à minha frente, com a cabecita a jeito para uma brincadeira. Não resisti: fiz-lhe uma festa disfarçada. Num movimento rápido, voltou-se e olhou-me num instante de dúvida. Eu terei deixado escapar alguma expressão que a fez concluir ser eu o autor da brincadeira. Sorriu e regressou ao malabarismo. Pouco tempo depois, toquei-lhe no ombro mais distante, mas a brincadeira não resultou em nada, ela já não saía do colorido dos embrulhos.
Com voz atarefada ouvi a proprietária perguntar uma vez mais pelo cliente seguinte:
– Quem está a seguir?
Era eu. Mas a mãe da rapariga tomou-me a vez: avançou para o balcão e disse à filha que perguntasse pelo que vinha. Do modo como agiu, ficou-me a sensação de não ter o propósito de me passar à frente. Por isso não reagi. E confesso que não me desagradava prolongar aquele tempo.
– Faça o favor! – disse a proprietária.
E a rapariga, apontando para a montra do pequeno armário, disse que gostava de ver as caixinhas dos compassos. A mulher foi buscar três e pô-las sobre o balcão. Foi então que a rapariga iniciou um jogo que consistia em pegar nas caixas, uma de cada vez, e perscrutar-lhes o interior.
Era um jogo repetido e longo. A mãe assistia calada. A proprietária ia repartindo o olhar pela rapariga e a loja. A irmã da rapariga cansara-se do jogo e voltou a colar-se ao balcão, novamente rendida ao malabarismo da mulher dos embrulhos.
Eram três marcas diferentes de compassos. Uma delas, eu conhecia do liceu. Ao tempo, era indiscutivelmente a melhor e também a mais cara. Muito namorei um desses estojos, com compasso, tira-linhas, várias pontas, caixinha de minas…, muito completo, que a Papelaria Central exibia, em destaque na montra: caixinha preta, elegante, de tampa a abrir como de baú; as peças acomodadas numa ergonomia de flanela azul… ou verde? Já não sei… Namorei-o, mas para mim foi estojo que nunca saiu da montra da Papelaria Central.
A rapariga parecia enfeitiçada com as caixinhas. E eu estive quase para me intrometer, opinando. Mas não o fiz. De qualquer modo, a mãe dela não me daria tempo. É que, a modos de pôr termo àquela dança de caixas, ela rompeu a perguntar:
– Quanto custa isto?
A proprietária foi então pegando nas caixas e, à medida que lia os preços na etiqueta colocada na parte de baixo, ia dizendo:
– Esta custa setecentos escudos; esta, novecentos; e esta, mil e duzentos.
Mas esta revelação não caiu bem na mãe da rapariga:
– A mais barata custa setecentos escudos?! – disse ela, com grande espanto. E, voltando-se para a filha, continuou:
– Eu não dou setecentos escudos por esta coisa! Não faltava mais nada! Aliás, para que queres tu uma porcaria destas?!
Atraídas por aquela voz desgovernada, as pessoas próximas puseram-se a olhar mãe e filha. A mulher dos embrulhos deixou a meio o corte da tirinha de fita-cola. A irmã da rapariga estava pendurada na interrogação daquele momento. Por instantes, a proprietária ter-se-á esquecido de vigiar a loja. Petrificada, a rapariga deixava os olhos nas caixinhas. E eu já previa o desenlace daquela cena.
Não me enganei: num rompante, a mãe pediu desculpa à proprietária, Desculpe!; arrancou a filha mais nova do balcão e desandou loja fora. Atrás, com passos de tristeza e, certamente, de vergonha, seguiu a rapariga.
Apanhando-me ali, a proprietária encolheu os ombros num gesto a que eu não reagi nem quis compreender. E, quando lhe pedi o jornal que ali me trouxera, já a animação anterior às caixinhas dos compassos se tinha instalado na loja.


                                     Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, JN.         
   

Sem comentários:

Enviar um comentário