domingo, 12 de dezembro de 2010

ÁRVORE, FLOR E AVE

Em 1997, numa sexta-feira de 13 de Julho, eu trazia para a Escrita de Mel e Água do Jornal de Notícias, uma crónica de Inocência e Culpa sobre o acto ou os actos de escrever. Reli-a, há uns dias atrás, e devo confessar que ela, a referida crónica, ou o ofício da escrita ou o tempo que se meteu entre nós de então até hoje, ou o que fosse, fizeram-me nascer umas lágrimas, que eu desconhecia serem ainda tão grossas, nos meus olhos, diga-se, um pouco já cansados, e meteram-se a escorrer pela face abaixo, como rios. Algumas delas vieram dar ao canto da boca onde a língua prontamente as recolheu – lágrimas como frios rios que correm para dentro de nós. Às outras desfiz-lhes os caminhos, secando-as com as mãos.
Ilustrava a crónica um texto-desenho meu, um concretismo de letras e palavras desenhadas e desenhadoras de coisas, que, com pena minha, aqui não consigo reproduzir… Deixo-vos o texto apenas verbal.


INOCÊNCIA E CULPA

Escrever é um pouco como ter um pedaço de terra para onde se lançam sementes. Como vão as sementes germinar, que colheita se há-de vir a fazer, não se sabe. Desde o tempo das sementes encontrarem a terra ou de as palavras a folha de papel semeia-se a incerteza e a esperança. Mas é, talvez, nessa temporalidade de dúvida e de expectativa, nesse tempo de segredo das coisas, que maior é a tensão, o gozo ou o prazer de quem escreve e lê. Tal como semear, escrever é um gesto empenhado, atitude de quem quer revelar aos outros um pouco, ou muito, de si, daquilo que é ou de que é capaz. E, escrever, tal como semear, é sempre um acto de luta, de criação, de libertação.
Ao certo não sei por que trouxe hoje aqui esta imagem de sementes e palavras, de terra e folha de papel, de segredos e de colheitas reveladas. Tanto mais que não é, com certeza, uma imagem inédita. Muitos outros, antes de mim, tê-la-ão já utilizado no propósito de se surpreenderem a si mesmos e aos outros, no intuito de mostrarem um lado ainda oculto das palavras ou uma seara ainda não vista.
Não sei por que trouxe para aqui tal imagem. Mas isso talvez nem interesse. O certo é que já lancei as palavras, o gesto foi o gesto que foi, e o que há para ver já está sob o olhar.
Não sei ao certo as intenções inconfessadas desta crónica, mas ocorre-me a extraordinária ideia de, numa realidade possível ou numa virtualidade desejada, lançar palavras à terra e sementes para uma folha de papel. Ocorre-me a maravilhosa visão de numa folha de papel escrever ÁRVORE, e da palavra aí nascer uma árvore, pequenina, como tudo o que nasce, esperar depois o tempo preciso para vê-la crescida e dar frutos, e depois colhê-los saborosamente.
 Ocorre-me a não menos maravilhosa visão de lançar a palavra FLOR a um campo de terra e aí nascer a concreta linguagem de uma flor de palavras – sim: uma flor toda ela de letras e palavras, desde a raiz às pétalas.
Dir-me-ão que sou louco, que estou louco. Mas talvez não. Acho que não, ou talvez sim, talvez até esteja louco… Mas apenas comunico o que é estranho, o que pode parecer estranho.
O leitor (você, leitor) que já me disse nada perceber de certas crónicas minhas, vai desta vez achar-me completamente louco. E, como ele, achar-me-ão louco todos os leitores para quem o gesto de lançar sementes é um gesto repetido e sempre igual; os leitores que, inocentemente culpados, têm matado as palavras até ao seu ser mais pequeno.
Mas, leitor, deixa-me ser assim louco! Deixa-me ser assim, que é saudável esta loucura! E deixa-me também que te tente numa loucura igual: pega num lápis e sobre um implacável folha branca de papel escreve a palavra AVE. Escreve-a, e depois fica à espera que a palavra se faça ave. E depois hás-de saber ainda esperar que ela se levante voo, e depois voe pelo espaço que souberes imaginar.

Fernando Hilário

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