sexta-feira, 29 de março de 2013

do brilho necessário

O texto que se segue foi publicado no Jornal de Notícias em outubro de 1993. É provável que o leitor encontre nele um qualquer desassossego...

                                                                      A IDEIA
Naquela manhã, à hora a que as flores se abrem e os animais se animam, um homem chegou, anunciando que tinha uma ideia. Os outros homens pararam o início do dia e todos se puseram a escutar atentamente o homem da ideia.
A ideia, apresentada com especial saber, parecia uma ideia boa, ou mesmo uma ideia brilhante. E todos os homens a aceitaram, entusiasmados. Alguns até lamentaram o facto daquela ideia não ter aparecido há mais tempo. E, a partir desse dia, foi essa ideia que passou a nortear os homens, ou, dito de outro modo, os homens passaram a nortear a sua vida por essa ideia, que lhes parecia brilhante e necessária como o sol dessa manhã.
Mas os dias passaram, nem muitos nem poucos; passaram os dias exactos para que os homens começassem a dar-se mal com a ideia, a não saberem nortear a sua vida pela ideia, a não aceitarem a ideia para norte das suas vidas.
 
Os homens andavam sem saber o que fazer. Os dias nasciam e eles nem viam as flores, que continuavam a desejar o sol, a aceitá-lo, como antes eles aceitaram aquela ideia, que acharam brilhante.
 
E, cada dia que passava, os homens mais confusos e revoltados se mostravam. Até que todos pararam o início dos dias e se reuniram para discutir a ideia.
Juntaram-se, então. Mas em tão grande alvoroço que ninguém conseguia discutir fosse o que fosse. Apenas diziam que todo o mal estava na ideia, naquela ideia que um dia um homem lhes trouxe. E pediam a cabeça do homem, a morte da ideia; e gritavam palavras de fúria, palavras de guerra.
Mas um homem, de entre todos, conseguiu erguer a voz para serenar todas as outras.
E disse:
– O nosso mal não está na ideia que o homem nos trouxe. Não é dela a culpa de não sabermos o que fazer nem para onde ir. O mal está em nós, que aceitámos uma ideia que só agora pretendemos discutir.
– Então, tu o que propões? – questionou outra voz.
E o homem, que erguera a voz para serenar todas as outras, e que tinha os olhos da cor das manhãs claras, disse:
– Eu proponho que cada um apresente uma ideia. Que todos discutamos serenamente essas ideias, ou mesmo mais ideias, de maneira que cada um de nós possa ir construindo a sua ideia.
E assim se fez.
E quando a noite caiu, os homens ainda estavam reunidos a discutir as ideias. Muitos sonharam com elas. Algumas até lhes pareceram brilhantes para nortear as suas vidas, ou, melhor dizendo, as suas ideias.
Na manhã seguinte, ao início do dia, todos partiram. Mas quase todos ainda iam às voltas com as ideias, o que, em nosso modesto entender, era bom, muito bom que assim fosse.
   Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, Jornal de Notícias, sexta-feira, 22 de outubro de 1993       
  

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

1991-2013 ou 22 anos depois…

                                                                       O dia dos sustos

Num determinado tempo da minha meninice, julguei que o Carnaval fosse o dia dos sustos. Os mascarados existiam para nos assustar. Por isso é que iam no encalço das pessoas e, em piruetas desconformes e medonhas, lançavam-lhes o feio das suas figuras. Depois, explodiam em terríveis gargalhadas, felizes pelo efeito conseguido.
Tinham essas exibições qualquer coisa de tétrico, de macabro, de mortuário. E eu tinha-lhes muito medo.
Na raiz desta ideia estavam certamente as primeiras máscaras que eu vi e cuja impressão perpetuou algum tempo na retina. Eram feias carantonhas, máscaras de um grotesco sem graça, negras, brancas, vermelhas, resultado de uma plástica que conciliava o engenho local com os materiais possíveis. No fundo, eram criações na linha dos espantalhos. Mas espantalhos vivos, caveiras movíveis, talhadas na casca esbranquiçada de uma abóbora, duendes, ogres, bruxas, fadas más, piratas de olho de vidro e de perna de pau, mafarricos, fantasmas feitos de pano de lençol e outras demoníacas figuras pintadas a carvão e rouge.
Só mais tarde, a indústria trouxe as máscaras de papelão, de cartão, de plástico, com cores brilhantes e fixas, resistentes à água atrevida das seringas, e tão reais algumas que pareciam a sério.
Começava, assim, a mascarada em pronto a servir, a possibilidade de cada um escolher a máscara a seu gosto, sem apelo pessoal a grandes engenhos e artes.
Nesta altura, eu já era rapaz de escola primária. E para entrar na brincadeira, economizava nos pirolitos, nos chupa-chupas, na fava-rica e outras gulodices. Ia então à venda e comprava uns tostões de estalinhos, bombinhas, bichas-de-rabiar, serpentinas para os automóveis levarem e, sobretudo, uma bisnaga ou seringa. A melhor que tive foi uma tipo pistola James Bond. Infalível, de esguicho veloz, longo e certeiro.
Depois veio o tempo de olhar para a sombra. E o Carnaval, como qualquer outra festa profana, era sempre aguardado com ansiedade. Com ele vinham os bailes; vinham outros contactos e aberturas que ao tempo tinham tanto de proibido como de desejado. E as máscaras, o disfarce, davam jeito… Quanto mais não fosse, davam alento aos tímidos e mais “lata” aos que já a tinham.
Era, enfim, tempo de certos escapes e avanços, como ainda o é hoje, e o é ainda de alguma permissividade e de certos exageros.
E depois desse tempo, o Carnaval foi-se estreitando ao convívio dos amigos, com uns copos, um chouriço em álcool, caldo-verde e alguma música.
Mas este Carnaval de 1991 trouxe-me memórias bem longínquas. Memórias desse tempo da minha meninice. E pensei mascarar-me. Não para ir a um baile de máscaras ou tomar parte em um desfile de rua. Nada disso. Pensei mascarar-me para ir meter medo a certos homens…
Mas por pensar que não há nenhuma máscara capaz de lhes meter medo, desisti.
 
 
                                                                                                                      Fernando Hilário
(Crónica publicada na rubrica “Escrita de Mel e Água” do Jornal de Notícias,  a 14 de fevereiro de 1991.)