sábado, 2 de outubro de 2010

Porque os países também morrem





Com as medidas anti-crise, apresentadas pelo PM, tudo está aí, claro, bem à vista: Portugal não tem riqueza, nem arte nem engenho para a criar; por isso, ficamos assim, cada vez mais pobres, como quem vive em agonia, miseráveis, a morrer.
 Em Março de 1993, não me lembro agora por que circunstâncias ou razões, eu publicava, na Escrita de Mel e Água do JN, “História do Futuro”, um conto que, apesar da distorção da realidade, naturalmente criada pela fantasia do non-sens e da caricatura, tem hoje, como certamente teve nesse tempo, uma dose, dir-se-ia, plausível, de verdade. Modéstia à parte, também poderemos encontrar na estória bizarra do conto, alguma provocação para a reflexão que, obviamente, a todos nós interessa fazer.



HISTÓRIA DO FUTURO

Quando o homem quis saber que país tinha sido este, o outro homem, a quem a pergunta fora feita, olhou o horizonte com os olhos que pareciam desinteressados, demorou a resposta, mas acabou por dizer:
 – Se quer que lhe diga, nem sei bem. Apenas lhe posso dizer que fomos europeus, europeus duma coisa chamada CE.
– Mas sabe como se chamava este país? – perguntou o interessado.
– Se me der tempo para um esforço de memória, se não tiver muita pressa, creio que chego lá.
– Fique à vontade, pense o tempo que precisar – disse o outro.
E o homem pensou, pensou, até que disse:
– Se não se chamava Espanha, chamava-se Portugal. Mas como me lembro mais do outro do que deste, é provável que se tenha chamado Portugal… Ou Bruxelas?!... Já não sei bem.
– E lembra-se de algum político importante, ao tempo?
– Sim, dos políticos lembro-me bastante bem, que os políticos não são fáceis de esquecer.
 – Diga-me, então, o nome dum político deste país – pediu o outro.
– Jacques Delors – disse o homem, sem grande esforço.
– Pelo nome não me parece ser daqui… Mas, enfim, este país poderá ter sido um país cosmopolita…      
 – Ah, sim, isso era! – atalhou vivamente o homem. Eram muitos os povos, as línguas e os interesses que por cá havia. Disso lembro-me eu bem.
Fez-se uma pausa, até que o homem que queria saber perguntou:
– Devia ser um país próspero, a avaliar pelas auto-estradas…
– Olhe que não! Isso foi apenas uma mania, uma espécie de tique, uma inconsequência.
– Como assim?! – perguntou o outro, visivelmente espantado.
– Bem, isto era uma espécie de terra dos outros. Os outros vinham passar férias para cá, viver, investir… Por isso, havia a mania de fazer boas estradas. Mas, para além disso, as ideias eram poucas.
 – Mas as estradas também serviam os de cá?! – perguntou o outro. E o outro respondeu:
– Não, não era bem assim. Mas, ao certo, também não lhe sei dizer como era.
– De qualquer modo – continuou o outro –, as vias serviriam para a comunicação dos produtos agrícolas, da indústria…
– Também não era bem assim. Nós não tínhamos grandes indústrias nem agricultura que se visse. Vinha quase tudo de fora. Nós pouco produzíamos. E o pouco passou a ser nada.      
 – Passou a ser nada? Como assim?!
 – Também não me lembro muito bem como é que isso aconteceu. Mas parece que pagavam aos agricultores para eles não produzirem. Os outros produziam por nós e punham cá os produtos. E quando isso acabou, já ninguém sabia fazer nada, tinham-lhe perdido o jeito.
– Mas comiam o quê? Perguntou o outro, curioso.
– Já lhe disse: comíamos as coisas dos outros.
– E na indústria?
– Na indústria, fazíamos aquilo que os outros nos deixavam fazer.
– Como?
– Por exemplo, fazíamos peças para automóveis, mas não fazíamos automóveis a andar. E quando os outros se foram embora, ficámos com as fábricas e as peças paradas.
– Então, este país não era bem um país! Era qualquer coisa como um comedouro e um amontoado de empregados! – conclui o outro.
– Mais ou menos isso – anuiu o outro.
 – E os serviços? Sim, os serviços como eram? Bons? Burocratas?... E a educação? E a saúde?...
– Olhe, disso não me lembro nada. Mas não devia ser grande coisa. Aliás, eu ainda guardo muitos papéis desse tempo. Creio que nunca nos demos bem com essas coisas dos serviços.
 – E o capital? O capital?
– Que capital?! O capital era dos outros. Quando foram embora, levaram-no com eles.
– E o senhor, de que é que vive, agora?
– Olhe, ao fim e ao cabo, do que sempre vivi, do que sempre vivemos…
– Não me diga que é da esperança ou da saudade? – perguntou o outro, julgando adivinhar.
– Mais ou menos.
– Porquê, mais ou menos? – quis ainda o outro saber.
– E o outro homem olhou outra vez o horizonte. Era manhã. O nevoeiro aconchegava aquele mundo. E disse:
– Dali há-de vir o D. Sebastião, para nos salvar.
– Quem é esse? – ignorante e chato, quis o outro saber.
– Isso não me pergunte, que eu também não sei. Só sei que ele há-de vir, até porque, se ele não vier, eu não sei o que fazer com a minha vida.

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