sábado, 16 de outubro de 2010

DESAFORO, ROUBO e INDIGNAÇÃO


No JN de 29 de Janeiro de 1993, publicava-se, em Escrita de Mel e Água, a crónica “Do outro lado do Atlântico”, um texto alinhavado em tom irritadiço, algo azedo, com que o seu autor dava conta de um certo cansaço e até indignação sobre o tempo social e político que então se vivia. Porém, não há na crónica uma referência objectiva sobre o facto ou factos que me terão motivado a escrevê-la, e nem eu os tenho agora presentes na memória. Por isso, a crónica resulta (como certamente já acontecera na altura em foi publicada) num texto de alguma ambiguidade, caso se lhe queira encontrar um sentido meramente referencial.   
Mas há sempre uma razão que justifica o acto da escrita, ainda que, por vezes, nenhuma razão aparente se lobrigue à superfície das realidades tangíveis e inequívocas e, pelo contrário, se alojem onde as razões são mais difíceis de encontrar, por isso, mais recônditas e, simultaneamente, mais profundas.
De qualquer modo, o que objectivamente motivara essa crónica, não foi certamente tão grave quanto a hecatombe (creio que não estou a exagerar, antes estivesse) que o Governo se prepara para instalar no País.  
Desde a restauração da democracia de Abril de 74, nenhuma decisão política representou tão grave ameaça aos direitos dos cidadãos e à vida livre e soberana de Portugal. Do que decorre da aplicação da medida, nada se iguala em prepotência e desrespeito.
Creio que nunca o despudor e a desfaçatez foram tão medonhos. Creio que nunca houve uma tão descarada e hedionda roubalheira.
Uma crónica que hoje se escreva sobre o tempo social e político que estamos a viver, terá que afirmar com toda a frontalidade que a Democracia se está a transformar num exercício déspota do poder político-económico que se instalou na Europa dos últimos trinta anos.   
E uma crónica que hoje se escreva diante das circunstâncias e dos factos à vista, terá que afirmar com toda a frontalidade que urge defender a Democracia, tal qual ela é em sua essência e deve ser na sua prática – um regime político que promova a riqueza colectiva e o bem-estar social, à luz de direitos e deveres iguais para todos os cidadãos – e não a desfiguração em que os patetas alegres dos políticos deixaram que ela se transformasse.


DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO

Creio que já aqui uma vez disse que são tantas as coisas que o difícil é optar… De facto: somos o alvo para onde convergem todos os projécteis. Às vezes, apetece sacudir a praga, como quem repele insectos numa noite abafada de verão. Cravam-se uns na sensibilidade cutânea; outros volteiam, zumbindo; outros aguardam o ataque a uma distância táctica, operando depois com maquiavélico oportunismo.
A culpa de tudo isto, para além de outras culpas, é o facto de sermos seres informados – uns mais, outros menos.
Tudo, ou quase tudo, nos é dito: e acabamos sempre por saber aquilo que por algum tempo nos escondem. É: mais tarde ou mais cedo, sabe-se. E quando se sabe algo tarde, mais se escancara a boca do espanto. Ou talvez não. É que nós já sabemos, nós já aprendemos que tudo é possível…
E o espanto, às vezes, não passa de um exercício de retórica sentimental – uma forma de exteriorizar, em nada diferente de silenciar. Ou talvez porque nos vem de longe o hábito de materializarmos as informações recebidas, ensaiando e emitindo reacções comunicativas, que, raras vezes, não passam de ruídos ou tiques, como dizer Bom-dia! Como passa?, sem que no enunciado haja qualquer intenção afecto-comunicativa, qualquer sentimento sentido.
Seres dotados de habilidades, algumas tidas como básicas, como são as de ouvir e falar; seres dotados de outras habilidades, como sejam ler e escrever; seres, como já aqui se pretendeu dizer, rodeados e banhados de linguagens e mensagens difundidas a preceito, mas também a torto e a direito, não sabemos, melhor, não podemos escapar à praga.    
Desde que o século da Comunicação, acoplado da sua filha, a menina Informática, nos pôs aqui como se estivéssemos em qualquer lado, dotando-nos assim de uma certa ubiquidade, o bombardeamento informativo não mais parou de ribombar.
Chegada a crónica a este ponto, poderá o leitor concluir que o alinhavador destas linhas se insurge, ao jeito de zelado pasteleiro, contra as moscas que a informação nos leva para casa. Conclusão mais clarividente e gritante será a do leitor considerar que este alfaiate compara a informação a pestilentos e incomodativos insectos. Mais trivialmente concluirá ainda o leitor que o tipo em questão é apologista do aforismo da avestruz a meter a cabeça na areia.
Mas este alfaiate, alinhavador, pasteleiro ou outro ofício que sirva a estilística em curso, com a autoridade que o exercício da pena lhe dá (que até é capaz de não ser nenhuma) categoricamente não confirma: simplesmente, desmente.
Em boa e rechonchuda verdade, o que este sujeito gostava é que uma carrada de coisas que nos são ditas não o fossem. E não o fossem apenas pela salutar razão de elas não existirem.    
Sabe agora o leitor do que falo. Com certeza: falo da estupidez que por aí anda a empestar o Mundo – moscas de agora e de sempre. Tantas que para lhes pôr termo seria necessário formar um colossal exército de zelosos pasteleiros armados de eficazes mata-moscas. Ou nem mesmo assim…
Das coisas que subentendidamente falo (dessas moscas, portanto), não vou dar relação detalhada – deixo isso para a imaginação do leitor. Mas o leitor sabe ao certo que moscas são.
Ora pense! Exacto, essa horrenda praga. E essa, também. Essa então, nem se fala. Claro, e essa também. E há mais, não é verdade? Basta pensar um pouco. Olhar ao redor. Ouvir os zumbidos…
Sabe, leitor, eu às vezes penso que nunca mais chegará o dia de uma pessoa andar simplesmente a colher flores, ou andar simplesmente a fazer outra coisa qualquer, por exemplo, ver tranquilamente televisão. Por falar em televisão, o leitor já pensou que bom seria se o mal do Mundo fosse as telenovelas brasileiras?
                       
(Fernando Hilário, Escrita de Mel e Água, JN, 29 de Janeiro de 1993)

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