sábado, 30 de outubro de 2010

NA APARÊNCIA DAS COISAS

Às vezes, metidos por aí, por espaços da realidade tangível, da casa, da rua, da cidade, enfim, de lugares do mundo onde nos podemos encontrar, deparamos com um tempo, aparentemente, em tudo igual a um tempo que fora outrora. E então parece que tudo se veste das mesmas roupas, que há um hálito comum e que todos os gestos são rigorosamente os mesmos. É: por vezes, achamos que tudo acontece num momento plasmado. E achamos tudo tão igual na aparência das coisas, que apenas nos cumpre ficarmos gratos da memória que temos.


PORQUE TODOS SOMOS CRIANÇAS

Trazem o tempo dos dias pequenos e frios; levam longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas!
Servem-se embrulhadas em frágil cartucho de papel de jornal, como um cone, onde se encastelam quentinhas e onde não interessa guardá-las por muito tempo, pois que são boas quentes. Quentes e boas!
Comem-se pela cidade, numa ginástica ágil. Porque são quentes, queimam os dedos, e porque assadas, com a casca da cor da cinza, sujam-nos. Mas aquecem-nos as mãos, o mesmo que dizer o coração. Quentes e boas!
Enchem-nos a boca como um pão farinhento, suavemente doce, suavemente salgado. Quentes e boas!
Vende-as o vendedor de castanhas, numa azáfama de fogo e fumo. Quentes e boas!
A criança que passa com a mãe, não sabia que se assavam e vendiam castanhas na cidade. Quis ver o que era, perguntou, pediu à mãe… Quentes e boas!
O vendedor de castanhas alimenta o fogo, dá-lhe vida; malabarista, faz carambolar as castanhas na caçarola. Hão-de assar todas por igual. Quentes e boas!
Os olhos da criança ardem no rubro do ritual; aprendem-no, guardam-no – a cor, os gestos, o cheiro, a fala. Quentes e boas!
Fogareiro grande; réplica de uma antiga máquina a vapor. Quentes e boas! Cabeça de comboio, como se fosse levar longe o cheiro do carvão em brasa, em cinza. Quentes e boas! Quentes e boas! Como se fosse por trilhos a refazer viagens de outrora, de tempos que se perdem no volátil, no fumo dos tempos. Quentes e boas! Quentes e boas!
Donde vêm os vendedores de castanhas? A criança pergunta. Mas não há uma resposta. Vêm certamente dos sítios que se diz serem tão fantásticos que sempre se guardam em segredo. Sim, talvez não interesse saber exactamente donde vêm… Quente e boas!
Cartucho grande? Pergunta o vendedor. O vendedor é o corpo grande de uma castanha assada que se dá em cada cartucho, como um cone de um labor encastelado. Quentes e boas!
Quentes e boas! Depois, então, a ginástica ágil dos dedos, o gosto a pão doce e salgado – o calor de uma relação a inscrever-se, talvez indelevelmente, no imaginário da criança. Quentes e boas!
E o tempo dos dias pequenos e frios há-de repetir-se num ciclo redondo ao jeito das castanhas que se querem quentes e boas. Até lá, até ao tempo de cada vez ser tempo de castanhas assadas, andará no ar o cheiro do carvão em brasa, em cinza, como se fosse um comboio a ligar tempos e lugares, com a cabeça, máquina a vapor, a espalhar memórias, a marcar o rumo e o ritmo das coisas simples, continuamente a apregoar Quentes e boas! Quentes e boas! Quentes e boas!
Fernando Hilário, Jornal de Notícias, Escrita de Mel e Água (Não sei da data em que a crónica foi publicada, mas é provável que tenha sido em: Outono/Inverno da década de 90 do século XX).
 

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