sábado, 6 de novembro de 2010

AFINAL, PARA QUEM FALAM OS POLÍTICOS?


Na mais feliz e vaidosa das oratórias se achou certamente o ministro Santos Silva, quando discursou na última sessão do Parlamento. O empolgado orador fez recurso da metáfora, serviu-se dos mitos e dos símbolos, para uma retórica que quis muito adornada e eficazmente persuasiva. Dir-se-ia um momento brilhante, de grande enlevo verbal, de grande erudição.
A mim me parece tal verborreia, coisa já ultrapassada, sublime pirosice, paráfrase prenhe de citação enciclopédica. Mas esta apreciação talvez não interesse.
Interessará saber, isso sim, para quem falava o ministro. Sim, sabemos que falava para si próprio e para os outros políticos. Mas tirando esta corte, para quem falava o ministro?
Afinal, para quem falam os políticos?


O CONTO DO HOMEM QUE FOI PARAR AO INFERNO (Inédito)

Um homem foi parar ao inferno. O porteiro encaminhou-o para a Secção de Registos; registou-se, depois uns cicerones da área das relações públicas levaram-no a visitar o inferno, a conhecer a vida, como era, o que podia fazer.
O homem estava admirado, tão admirado que até perguntou se ali em vez do inferno não era o céu. Quiseram saber por que se admirava. Porque é tudo tão agradável! tão simpático! até parece o céu! Mas o senhor conhece o céu? perguntaram-lhe. Não, não conheço! A que se deve, então, a dúvida? O homem calou-se; enganaram-no a vida toda, sempre lhe disseram que o inferno era o fogo ardente, onde sofreria, e, afinal, parecia a vida no inferno um sonho! Saiba que, disse um dos cicerones, a nossa preocupação é que todos se sintam bem no inferno! Mas diz-se tão mal do inferno! disse o homem. Quem diz? perguntou outro cicerone. Toda a gente. Quem? A gente da Terra. Ah, bom, isso sim, essa gente diz mal, mas como pode constatar não corresponde à verdade. Pelos vistos, não, concluiu o homem, e continuou: Mas porque será que dizem mal, se o inferno não é nada do que dizem?! É marketing, disse outro cicerone, o céu não consegue oferecer as nossas condições, por isso, dizem mal; em contrapartida, nunca ninguém nos ouviu dizer mal do céu; a nossa política é simples: deixamos que os outros falem por nós...
Iam andando, os cicerones mostravam o inferno, falavam dele e da vida. O homem estava admirado. Parecia que nada faltava, tudo tinha um ar pós-moderno, nada minimalista, nem sequer espartano, mas sim de shopping luxuoso; as pessoas que se cruzavam com eles nos corredores refulgiam alegria, boa disposição, contentamento; os rostos reluziam, os olhares faiscavam… Na zona da restauração, pararam, coisa digna de se ver, um restaurante estava a abarrotar de gente; tinha paredes e telhados de vidro; era o Zé do Pipo; espiou a ementa exposta à entrada em retábulo debruado com uma parreira em baixo-relevo:
petiscos
bucho chispe orelha de porco fígado de cebolada coração frito torresmos  bacalhau frito  pataniscas de bacalhau  pastéis de bacalhau  caracóis à lisbonense chouriço assado na brasa  favas estufadas com chouriço, os cicerones liam com ele, peixinhos da horta  enguias de barrica  filetes de sardinha  sardinha frita sardinha de escabeche  sardinha assada na brasa  caparau frito  pratinhos de moelas  rissóis de vitela e de camarão  chamuças  croquetes  temos broa de Avintes (…)
            Passou ao peixe:
peixe
 cabeça de pescada cozida com bom colarinho  pescada cozida com batata e feijão verde  pescada frita com batata frita e arroz seco ou malandro  filetes de tamboril com arroz do mesmo  filetes de polvo com arroz do mesmo  polvo à lagareiro sável frito  há mílharas! Os cicerones seguiam-no na leitura, sável de escabeche  chicharro assado na brasa com molho verde  espetada de lulas com gambas  bacalhau cozido com todos  bacalhau cozido com grão  meia desfeita com grão-de-bico  empadão de bacalhau bacalhau à Zé do Pipo  bacalhau assado no forno com grelos  bacalhau com natas  bacalhau com broa  bacalhau de segredo bacalhau à espanhola  bacalhau à Gomes de Sá  lombinhos de bacalhau frito com arroz malandro de feijão vermelho ou de grelos  arroz de bacalhau com ovos escalfados  bacalhau à demo  bacalhau nunca visto  cavala cozida  peixe-espada frito  fanecas fritas  raia cozida  cherne à Durão só por encomenda  robalo ao sal  linguado assado na brasa com molho de manteiga  bife de atum  chocos com ou sem tinta  arroz de lampreia ou à bordalesa (…)
            Passou à carne:
carne
 pezinhos de coentrada  feijoada à transmontana  tripas à moda do Porto  mãozinha de vitela com feijão branco  posta mirandesa, dois cicerones desinteressaram-se da leitura e conversavam ao lado, com batatas a murro  vitela assada  carne à jardineira  lombo, os restantes cicerones continuavam a segui-lo na leitura,  de porco assado com castanhas  espetada de porco preto  língua estufada com ervilhas  estufado de línguas de cabrito à Serra das Meadas  arroz de sarrabulho  rojões à moda do Minho  frango no forno à moda de Baltar  arroz de pica no chão  arroz de pato à antiga portuguesa  chanfana  leitão da Bairrada  coelho à caçador  coelho assado na brasa  coelho recheado  entrecosto na brasa  barriguinhas na brasa  cabidela de miúdos de leitão (…)
            Passou aos mariscos:
            mariscos
percebes  vieiras  amêijoas à Bolhão Pato  camarão da costa  gamba média, os dois cicerones regressaram à leitura, e grande  lagostins  tigres grelhados  maionese de lagosta  lagosta suada, os restantes cicerones desinteressaram-se da leitura e puseram-se a conversar em círculo no meio do passeio; como não viu preçário perguntou É caro? O quê? perguntou o cicerone que lia por cima do ombro direito dele; Se os preços do restaurante são caros? insistiu, e o cicerone da esquerda respondeu Aqui nada se paga. Não se paga nada?! admirou-se o homem que foi parar ao inferno. Não! respondeu um dos cicerones que estava no círculo da conversa, e continuou Está tudo pago. Como é possível?! queria ele ainda saber, mas um outro cicerone, de todos o que tinha o  rosto mais afogueado disse a modos de pôr termo ao assunto Sabe como é, são os apoios a fundo perdido, subsídios vários, coisas assim, há francesinhas à Luso (…)
            sobremesas
pudim abade de Periscos (…) 
Iam andando.  
Estava o homem cada vez mais admirado e perguntou Mas é verdade que vocês tudo fazem para desviar as almas, isso é verdade, não é? Desviar as almas!? que patetice! veja bem: que interesse temos nós em desviar as almas?! O homem pensou um pouco e concluiu, De facto, não há interesse nisso! Claro que não, isso é conversa dos do céu; espalham essa ideia para terem clientela, mas eles é que estão às moscas, disse outro cicerone. Soubesse eu que era assim, ainda tinha feito mais umas asneiritas, lá na Terra! disse o homem. Não seria muito conveniente, disse outro cicerone, olhe que para aqui só vêm aqueles que fizeram o que tinham a fazer; isto não é lugar para mentirosos ou falsos; cada um é como é: quem merece o céu, tem o céu; quem merece o inferno, tem o inferno. Não me queixo, disse o homem, ainda que haja uma pequena coisa que eu gostaria de ver alterada. O que é? perguntou outro cicerone. Isto tem ar condicionado, não tem? Tem, tem ar condicionado; todos os espaços do inferno têm ar condicionado, o ar é todo condicionado. Pois aí é que está o problema, disse o homem, é que eu não suporto o ar condicionado: faz-me arder os olhos, seca-me a mucosa, irrita-me a garganta, causa-me comichão pelo corpo todo! Quanto a isso, não há nada a fazer, disse outro cicerone, está estabelecido assim, não temos hipóteses de alterar seja o que for. Mas, disse o homem, não há nenhum responsável a quem eu possa dar uma palavrinha!? Responsáveis há, disse o primeiro cicerone (aquele que lera a ementa por cima do ombro do homem…), eu posso falar a um responsável, mas não vai adiantar nada! Mesmo assim, gostava de falar com esse responsável, disse o homem.
Fizeram-lhe vir o gerente. Já me constou que o senhor tem problemas com o ar condicionado. É verdade, não me dou com o ar condicionado, vão ter que desligá-lo. Não é possível, disse o gerente. Pelo menos, o do meu quarto... Lamento, mas isso é impossível, disse o gerente, o Departamento da Qualidade de Vida não autoriza que se desligue o ar condicionado, já tivemos casos iguais e o Departamento foi intransigente. Mas, se eu falasse com alguém responsável pelo Departamento de Qualidade..., propôs o homem. Falar pode falar, mas não vai adiantar nada, disse o gerente.
O director do Departamento da Qualidade de Vida foi peremptório: Não há nada a fazer, o ar condicionado é ponto assente, ninguém no inferno pode abdicar dele! Mas, disse o homem, veja bem: o ar condicionado para mim é um incómodo total, não o suporto, é um inferno viver com ar condicionado! Pois se assim é, disse o director, não vejo inconveniente nenhum: viva o inferno, meu caro amigo, viva o inferno!

                                                                                  Fernando Hilário

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