sábado, 15 de janeiro de 2011

PERSONAGENS DO TEMPO



Não tenho a certeza se o texto que hoje trago para o blogue foi ou não publicado na Escrita de Mel e Água. Mas é, de certeza, um texto desse tempo, ou seja, um texto escrito por volta dos últimos anos de mil e novecentos. Relê-lo trouxe-me a estranha sensação, já de outras vezes experimentada, de perceber que o tempo, por vezes, é em nada diferente daquilo que fora, a não ser no tempo maior (ou mais) que tem a sua própria idade. Mas o tempo é, também, ou é, sobretudo, o espaço onde nós nos encontramos a desempenhar um papel que ele, o tempo, nos tem, por uma qualquer razão, circunstância ou desígnio, reservado.


                                              
COM OLHOS DE MENINO

            É à janela daquele quarto daquela nova casa que ele ocupa a maior parte do seu tempo. Com olhos de menino, fica horas debruçado a ver as pessoas que passam naquela rua de muita gente. Se pudesse era para ali que ia; e havia de descer e subir a rua, cruzar-se com alguém, parar numa conversa amiga, tomar um café, comer um bolo na pastelaria da esquina. Às vezes, de tanto olhar a rua com os olhos de menino que ainda tem, imagina-se nela pessoa com pressa, pessoa como as outras pessoas com coisas para fazer; imagina-se a entrar numa loja para comprar uma qualquer coisa que fazia falta lá em casa, isto é: na sua casa onde em outros tempos vivia.
            A casa onde agora está não é sua: é uma casa grande de muita gente. Para esta casa não há nada para comprar e não há nada para fazer. É uma casa grande onde nada se faz, a não ser esperar que o tempo passe. Por isso, ele não gosta da casa por dentro; por isso, aquele quarto é quase tudo do pouco que tem; e aquela janela de terceiro andar é a sua televisão do mundo.
            Daquele quarto, quase nunca sai. Insistiu e fizeram-lhe a vontade em lhe trazerem aí as refeições. No quarto, recebe as visitas mensais dos filhos e dos netos. No quarto, atura o médico, a empregada que lhe muda a fralda, a directora que, numa cortesia agendada, vem a saber como é que está, como é que vai.
            Dantes, ainda ia até à sala de convívio jogar o jogo das damas, uma bisca ou suecada. Dantes, ainda falava de coisas com os outros homens e mulheres daquela casa. Agora, já não consegue. O quarto é tudo o que tem. Custa-lhe muito andar. Custa-lhe muito ir para a sala de convívio. Custa-lhe saber que o António e o Joaquim já não vão mais à sala de convívio. Custa-lhe fazer novos amigos. Custa-lhe voltar a falar da vida que teve. Tão longa, tão intensa, e ali tão brevemente narrada, à pressa, antes que tudo acabe.
            Aquele quarto é tudo o que tem: é o seu tempo real e imaginário; é a sua vida posta à janela; é o dentro e o fora, o interior e o exterior; é uma réstia do possível; é um faz-de-conta desejado, mas anedótico e ridículo da sua condição de pessoa da terceira idade.
            E quando a rua se despe de gente e a noite nela se deita como um rio de caudal negro onde ver a água é o mesmo que ver o fundo do rio, ele tem medo. Tem medo, tanto, que chega a fechar a janela para não ver o silêncio que vem subindo até à cama onde com ele dorme. E depois fica a noite toda à espreita, a ver se volta a ouvir mais uma manhã, mais um dia novo a vestir a sua rua. E ele sempre com os olhos de menino.

                                                                                              Fernando Hilário  

1 comentário:

  1. De todos os textos estes (os deste tema) são os que me ferem. Dói lê-los. Acho que até partilho a culpa. Estamos muito longe de sermos pessoas ideais, como deveríamos ser.
    Mas gosto de visitar o blogue.
    Afinal algo transparece na escrita que nos sensibiliza, incomoda, enfim, provoca uma reação.
    Continuarei a espreitar o blogue.
    Obrigada pela partilha.

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