sábado, 17 de setembro de 2011

O tempo é um relógio de cuco…



Numa sexta-feira de 17 de Novembro de 1995, publicava-se na última página do JN a crónica que se segue. Os factos do tempo são obviamente outros, mas os rostos que mostram parecem revelar que as coisas se fazem sempre da mesma farinha, o que já sabemos que é verdade, só apenas confirmamos. Mas a crónica tem outras confeções, que ao relê-la, confesso, não me desagradaram. Por isso, passo a partilhá-la.  



O lado submerso, o branco, outros sítios e cores

A criança guardava no bolso as bolas de gelo do uísque do pai. Guardava-as à saída do restaurante, no bolso do casaco azul comprido.

Disse o Governo que a arte de Foz Côa vai deixar de ser coisa submersa. As águas terão outra barragem, outras comportas. Por uma ou outra coisas, entretanto suspensas, como manda o estilo da política do PS, as gentes de lá vão esperando, divididas entre o passado e o futuro, desejando um novo presente. Em Castelo Melhor, onde fui ver as gravuras, convenci-me, [?] que os homens que as fizeram sabiam que em um tempo distante alguém as haveria de descobrir. Talvez só não pensassem que haveria de ser após tanto tempo. Mas alguém me disse que não, que, mais do que uma manifestação artística visando um destinatário, era mais um acto pudico e de manifesto recato, e até medo, pois reproduzir o real assim numa pedra seria blasfémia, coisas reservadas aos deuses, proibidas a mortais. Mas se assim fosse seria um acto mítico-religioso. Ou então seria, tão-só, a ancestral atitude do homem para possuir tudo quanto o rodeia. E reter no xisto um animal era em parte dominá-lo, exercer sobre ele um poder, controlá-lo, possuí-lo desde logo.

Os homens que querem fazer a paz morrem aos olhos dela. Não chegam a vê-la, porque a noite, como a morte, é coisa escura. Yitzhak Rabin ficará em gravura da arte rupestre deste Paleolítico, que em breve vai fazer 2000 anos após Cristo. De qualquer modo, que descanse no santuário dos exemplos vivos e que ganhem cores azul e verde como as bolas de gelo que acriança, à saída do restaurante, guardava no bolso do seu casaco.

Ontem, quarta-feira, 15 de Novembro de 1995, o telejornal de uma televisão noticiava: “Os médicos dizem que o pequeno Francisco tem 50% de possibilidades de morrer hoje”. Estranho, ou talvez não, não se ter dito “… 50% de possibilidades de viver hoje”. Hoje, no momento em que escrevo esta crónica, nada sei ainda do destino do pequeno Francisco. Continuo suspenso na informação dos 50% de possibilidades de vida ou de morte – uma equidistância que nada me diz, uma equidistância que apenas serve o gozo mediático das televisões. Suspense, estrangeirismo, o mesmo que expectativa (…) E não é a esperança a última coisa a morrer?!

As selecções nacionais de futebol ganharam à Irlanda e seguem em frente no “Europeu”. Do acontecimento vem à tona o nosso sentir português, emergem gravuras, talvez rupestres, talvez zoomórficas, do nosso patriotismo. De qualquer modo, os sonhos sempre se guardam nos bolsos de casacos azuis e, de preferência, compridos.

Na primeira página deste mesmo jornal, de quarta-feira, 15 de Novembro de 1995, leio: “Portugal intimidado a devolver fundos agrícolas mal utilizados”. É, obviamente, o emergir das irregularidades cometidas entre 1988-1993. E mais rochas hão-de aparecer à superfície, revelando, se não todo, grande parte extensão do santuário “laranja” do período do seu paleolítico superior.

Gomes da Silva, ministro da Agricultura do actual Governo socialista, não aceita a redução de cota da produção de tomate. E vai mais longe, ao dizer que a agricultura portuguesa não deve viver de subsídios. Quando maduros, os tomates são vermelhos – o seu sumo, diz-se, utiliza-se no sangue da ficção. Ficamos suspensos ou na expectativa de sabermos que filmes irão ser exibidos.

Andam a cair em desgraça as graças da IURD. Desta vez, em Rio Tinto.

Tal como a criança, eu acredito que as bolas de gelo não se tenham derretido. Acredito que […] chegou a casa, tirou-as do bolso do seu casaco azul e brincou com ela, berlindes transparentes e líquidos, iguais, rigorosamente iguais, ao seu pensar, como um rio claro e branco.

                                                              Fernando Hilário

  


1 comentário:

  1. Obrigada por existir no nosso "tempo" e partilhar... Ajuda-nos a refletir.
    Saberá a criança que o tempo não existe e que, como tal, chegará a casa "a tempo" de brincar com os berlindes de gelo?
    Os homens inventaram o relógio para medir "o tempo", para o controlar, para se apropriarem dele, desconhecendo (ou talvez não) que o tempo não existe... Há existências várias, manifestações da mesma essência, em dimensões diferentes da (mesma) eternidade. Adoramos quando o "tempo pára"... É quando nos sentimos eternos; é quando experienciamos a eternidade.
    Os autores das gravuras rupestres teriam o mesmo conceito de "tempo"? E de "religião" ("religação")? Penso que o conceito de "religião" ainda não existia. Eles não precisariam de se "re-ligar", pois ainda não se teriam "des-ligado" da Fonte... Teriam consciência da sua centelha divina. Porque razão teriam gravado aquelas pedras? Não estariam simplesmente fascinados com a descoberta de que as suas mãos eram capazes de reproduzir o "real" daquela forma? Não teriam achado aquelas grutas o local mais apropriado para o fazer, ao abrigo dos elementos da Natureza?

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